Seduzidos pelo esquecimento
Era noite de sexta-feira. Eu caminhava solitário pela calçada. O sábado iria começar dentro de poucos minutos e o inverno finalmente iria embora. Chegariam então, as flores, os amores e as dores da primavera.
Aumentei a velocidade dos passos com uma vontade imensa de chegar logo em casa e quem sabe até pegar um filminho na televisão. Quando dobrei a esquina da Rua Esperança com a Rua da Consolação, trombei de frente com uma pessoa que vinha em outro sentido. Era uma moça. Eu nunca tinha visto ela antes, porém tive a sensação, naquele instante, de que a conhecia de outro lugar ou mesmo de outra vida.
Com a topada ela caiu sentada no chão e assustado com acontecido eu a levantei.
-Você se machucou? - indaguei.
-Não – disse e balançou a cabeça negativamente.
Era linda. Aparentava dezoito ou dezenove anos e usava roupas da moda: coloridas e brilhantes. Olhou para o chão de um lado para o outro batendo com as mãos em sua calça para tirar o pó que estava grudado. Depois, olhou-me nos olhos e sorriu. Era um sorriso encantador e inocente.
-Você está bem? – perguntei. Fez um sinal de afirmativo balançando a cabeça e depois olhou novamente para o chão.
-Você perdeu algo? Ela apenas fez um sinal negativo com a cabeça.
-Então está bem... - falei meio que me despedindo e querendo ir embora. No entanto minhas pernas não se movimentaram quando eu tentei sair dali e meus olhos ficaram fixos naquele rosto maquilado de olhos castanhos que eram iluminados pela luz do poste.
-Você está bem mesmo? – tornei, tentando puxar conversa e querendo entender o que acontecia ao meu corpo, que não obedecia mais aos comandos do meu cérebro.
-Sim – disse depois de alguns instantes-, eu só me esqueci.
-Esqueceu o quê?
-Não sei, eu esqueci - falou olhando novamente para o chão.
-Você esqueceu ou perdeu?
Respondeu-me com um sinal de negativo balançando a cabeça e fazendo um biquinho com os lábios.
Cheguei a pensar que ela era louca ou que estava com Amnésia, pois agia de modo estranho. Conclui que ela não falava coisa com coisa, mas apenas se comunicava com gestos de cabeça, caretas e também com as mãos.
- Olha... Eu não sou louca e nem estou com Amnésia, se é isso o que você está pensando. Eu só esqueci-me de algo.
“Quem era aquela pessoa que trombava comigo no meio da noite, me prendia com seu olhar e com seu jeito meigo e agora também lia os meus pensamentos?” Pensei assustado.
-Eu só me lembro que estava frio, o resto eu não me lembro.
-Você quer ajuda? - já me arrependia de ter perguntado quando ela me respondeu:
-Quero!
-E... O que eu faço? – perguntei.
Não sei o que aconteceu comigo naquela noite, pois eu pensava uma coisa e falava outra. Queria ir embora, mas fiquei. Tudo acontecia ao contrário. Era como se uma força qualquer me forçasse a fazer o contrário do que eu queria
-Olha... Aquele dia estava muito frio.
-Qual dia estava muito frio e do que você está falando?
-O dia em que aconteceu algo e que agora me esqueci o que era.
Confuso, fiquei apenas observando-a e pensando no que dizer.
-Tudo isso é muito complicado - falei então - acho que não posso te ajudar, mas... Eu estava indo tomar um sorvete, você não quer me acompanhar?
-Não! – respondeu secamente.
Como pude pensar em sorvete? Quem iria querer tomar sorvete naquela hora? Acabei falando uma bobagem que poderia espantá-la. E eu não queria que ela fosse embora.
-Não... - disse novamente mexendo o dedo em sinal de negativo - naquele dia eu não tomei sorvete. Estava frio e eu usava uma blusa de lã bem apertada.
-Então que tal eu abraça-la, assim você teria a sensação de estar com a blusa apertada – as palavras saíram de minha boca sem que eu pensasse o que dizia.
-É... Quem sabe? – respondeu ela com satisfação.
-Posso? – arrisquei. Ou ela aceitaria ou sairia correndo e eu enfim iria para casa.
-Pode - respondeu-me e gesticulou novamente com a cabeça.
Então me aproximei e a abracei. Meu corpo encheu-se de um calor estranho e eu pude sentir o cheiro dela. Era um cheiro fresco e doce. Eu a envolvi com meus braços como se segurasse algo delicado como um cristal e que poderia se quebrar caso eu o apertasse muito. Assim fui apertando aos poucos, procurando o ponto certo de parar. Ela, no entanto não era frágil e, como se fosse o próprio vidro de perfume que estava usando, ficou esperando que eu achasse o ponto certo do aperto para exalar mais de sua fragrância, deixando esta em meus braços.
-Lembrou-se?
-Não. Mas... Olha... Naquele dia eu estava sentada.
-Podemos nos sentar na calçada.
-É, mas naquele dia eu estava sentada em um sofá bem macio.
-Sente-se então no meu colo – falei.
Fiquei com um pouco de receio e esperei um palavrão, porém ela fez sinal de sim com a cabeça, soltou-se do meu abraço e caminhou até a guia. Eu olhei para os lados da rua para ver se alguém nos via, no entanto a rua estava deserta. Fui até onde ela estava e me sentei, estiquei as pernas, ela se abaixou, sorriu, sentou-se em meu colo e eu abracei-a novamente. Quem passasse por ali naquele momento iria pensar que éramos dois namorados apaixonados.
-Lembrou-se? - perguntei pouco interessado em saber a resposta.
Não, respondeu sinalizando com a cabeça.
-Ainda falta algo?
Sim, respondeu balançando a cabeça.
-Ah! Naquele dia eu estava com uma bala na boca - falou ela contente, como se tivesse descoberto o mundo.
-Eu não tenho bala - respondi.
Achei que ela queria que eu fosse comprar balas para ela ou talvez apenas quisesse me usar para fazer ciúmes para alguém que iria passar por ali. Porém, se fosse isso eu não me importava, ela poderia me usar, pois eu estava tirando uma casquinha.
-E se... N... Não daria certo.
-O que? – perguntei.
-Bem... E se a gente se beijasse.
Quando ouvi o que ela disse pensei que ela estivesse realmente me usando para se lembrar alguém de quem ela gostava.
-Apenas quero comparar com a bala, pois dizem que o beijo é doce como o mel e naquele dia eu estava chupando uma bala de mel - disse ela explicando, me tirando aqueles pensamentos absurdos e mais uma vez adivinhando o que eu pensava.
-Claro, uma comparação - concordei.
-É. É como o sofá macio e seu colo – explicou.
Comecei a sorrir por dentro, meu coração ficou satisfeito, olhei nos olhos dela, engoli saliva e passei a língua por entre os lábios como se os limpasse ou como faz alguém que espera para saborear algo muito bom. Ela fez o mesmo. Então fui me aproximando aos poucos e senti sua respiração, dava também para ouvir seu coração que palpitava rapidamente. Seus olhos estavam bem abertos e me chamavam para junto dela. Percebi que ela sentia o mesmo que eu sentia - uma vontade louca de descobrir o sabor que os outros lábios tinham.
Com um movimento vagaroso nossas cabeças foram se aproximando e os lábios foram encontrando-se em “câmara lenta”, dava a impressão que nós estávamos metros de distância um do outro, até que finalmente, como se depois de horas, senti uma pequenina parte de seus lábios encostando-se aos meus, mas ela se afastou rapidamente, desfazendo-se até do nosso abraço.
-Lembrei... - falou colocando as mãos na cabeça.
Não tive mais dúvidas de nada, ela estava fazendo um jogo de sedução. Ela me feria com seu olhar, que não era tão inocente como eu pensava, era mortal e se eu ficasse ali com ela por mais algum tempo com certeza eu sucumbiria.
-Lembrei que naquele dia estava mais escuro do que hoje – falou.
Ela balançou a cabeça e sorriu. Esperou que eu dissesse algo, mas eu não sabia o que dizer, eu estava cansado daquele jogo.
-Estava escuro como embaixo daquela árvore - falou apontando para uma grande árvore na praça, cuja sombra escura, poderia esconder-nos.
-Vamos lá? - indagou sorrindo.
Balancei a cabeça fazendo sinal de sim. Levantamos e fomos até a árvore que ela apontara. Era uma Sibipiruna. Estava longe das luzes dos postes e sua sombra era menos assustadora de perto do que quando se olhava de longe. Sentei-me na guia, enquanto ela girava a cabeça jogando seus cabelos para frente passando por sobre o ombro esquerdo, pegou-os com as mãos e enrolou-os. “Deixe-os soltos” Pensei em dizer. No mesmo instante, como se ouvisse os meus pensamentos, ela soltou o punhado de cabelos, girou a cabeça novamente e atirou-os para traz, onde eles lhes cobriram a nuca e uma parte das costas.
Sem a menor cerimônia, sentou-se em meu colo, fez-me abraça-la e beijou-me. Foi um beijo quente, inocente e com sabor de mel. Respirou fundo quando sua boca desgrudou dos meus lábios e depois sorriu. Estava muito feliz.
Aquele beijo me deixou em transe, mas fiquei muito feliz também. Ela me abraçou forte novamente, grudou no meu pescoço, encostou a face esquerda de seu rosto na face esquerda do meu e sussurrou alguma coisa. “O que?” Perguntei movendo os lábios, mas não pronunciando as palavras para que ela não soubesse que eu não tinha entendido o que ela me disse.
-Obrigada. Eu me lembrei - disse, soltando-se do abraço.
-O que você lembrou? – perguntei curioso.
-Lembrei-me o que tinha esquecido.
-E o que você tinha esquecido afinal?
-O que eu me lembrei agora!
Continuei a não entender nada, mas eu nem queria entender também, eu só queria ficar ali com ela. Então ela me abraçou forte novamente e ficamos ali namorando até o dia amanhecer.