A Última Vez Que o Vi
Entrei no quarto. Tudo estava em seu lugar; escuro, em silêncio. Eu tentava, ao máximo, abafar meus passos, tanto que tirei o sapato e fiquei só de meia. Quanto mais adentrava e me aproximava da outra porta, mais o tal silêncio era substituido por um som ritmado; um arfar que ia e vinha tranquilamente e que dava certa sensação de calma. Toquei a maçaneta.
O outro quarto era ainda menor e não possuía janelas, o que causava total escuridão. Esperei; durante algum tempo tudo ainda era trevas, mas, cedo ou tarde, sabia que os meus olhos se acostumariam ao ambiente e este se revelaria pouco a pouco.
Foi então que localizei o motivo da minha busca; a razão da minha presença ali.
Lá estava ele ...o foco do som abafado - a sua respiração - agora claro e preciso, embora ainda baixo. O foco da minha visão minusciosa; o foco do anseio das minhas mãos - agora também pernas, braços, peito, cabeça, coração ...e tudo mais que me pertencesse, físico ou abstrato.
Uma onda de amor e de tudo de bom que ainda pode existir me invadiu de tal maneira que, reunindo todas as forças que habitam em mim para resistir, ainda assim seria inútil. Queria me aproximar, queria chegar tão mais perto e tão sufocantemente perto até que fôssemos uma coisa só; duas coisas tão insanamente unidas que as tais não saberiam mais distinguir-se uma da outra. Não mais poderiam; um processo irreversível.
Ele dormia...tão sereno! Tão tranquilo, tão perfeito no repouso do qual usufruía. Parecia estar distante dali, de tudo. Seu peito meio descoberto subia e descia, num ritmo lento, mas agradável. A respiração agitava,bem de leve, meus cabelos, agora derramados sobre o travesseiro; formavam uma espécie de cortina de proteção ao redor do seu rosto.
Meus olhos tinham sede; admirar aquele momento por toda a eternidade nunca seria suficiente para saciá-la. A obra mais bonita, perfeita, pura e maravilhosa de Deus, que, em sua magnificência, poderia construir, estava diante de mim, plena; ao meu alcance.
E se meus olhos tinham sede...todo o meu eu tinha fome, desesperada e devastadora, de tocá-lo, sentí-lo, quase de sê-lo. Não resisti. Me deitei ao seu lado com a cautela necessaria para não acordá-lo, me enroscando nele e envolvendo o cobertor sobre nós dois.
Deitei a cabeça sobre seu peito. Nossa! Como era quente! O fluxo sanguíneo ali devia ser intenso, bem como as suas contrações cardíacas, que, eficientes, distribuiam, simultaneamente, oxigênio para o seu corpo e amor para o meu coração. Prendi a respiração. As nossas batidas atuavam em conjunto, uma orquestra de dois componentes; elas cantavam alegremente - separadas por duas finas paredes - como quem acaba de encontrar o que a vida toda procurou; o impulso a continuar palpitando até ali. Era mágico.
Cada inspiração, uma prece. Cada expiração, um alívio - um agradecimento ao Divino por tê-la concedido mais uma vez não só a ele - mas também a mim. Tamanha bondade, a Sua, ao me permitir um corpo perfeito em todas as suas funções - será que era justo que eu pudesse escolher, sempre que quisesse, a melhor maneira de apreciar uma de suas mais explêndidas criaturas?
Parei. Pensei. Não sabia dizer em qual dos cinco sentidos eu estava mais plenamente feliz.
Respirei fundo. Abracei-o com todos os meus membros e pressionei minha cabeça contra o seu peito. Sentia tudo; ouvia tudo; via tudo, embora de olhos fechados. Minha mão perambulava, num vai-e-vem coreografado, tentando explorar cada pedacinho daquela pele quente e viva, que, embora adormecida, tudo ainda sentia. Ele era objeto de mim, prisioneira de quem eu aprisionava. Eu era sua e tentava, a todo custo, fazê-lo mais meu do que fosse possível.
Ele estava deitado com o busto virado para cima, e eu, de lado. Quase dormia. A sinestesia já confundia meus sentidos e se misturava com a realidade, de modo que eu já não mais sabia dizer se tudo aquilo era um sonho ou não.
E, quando eu menos esperava...eis que meu amado desperta! E me redesperta, uma vez que, em meus devaneios, já estava a milhas dali - com ele. Uma mão acaricia meus cabelos, e então um arrepio acaricia todo o meu corpo. Ele me olhou, um tanto surpreso, como quem não esperava minha presença ali. Eu ri da sua expressão, e então nós dois explodimos e gargalhadas. Depois, só nos olhamos; agora sérios e serenos. Ele ainda acariciava meus cabelos, e, com a outra mão, envolveu-me de maneira simultaneamente suave e firme - me imobilizou. Eu segurei, com as duas mãos, o seu rosto, deslizando-as onde eu mais gostava: sua braba rala, por fazer.
Disse a ele o quanto eu o amava com os olhos. Será que ele entendeu? Suponho que sim, uma vez que, em resposta, me deu o beijo mais bonito de todos - o seu corpo todo também respondia, em voz alta, que o que eu sentia era mesmo recíproco. Um abraço apertado e eu esquecia completamente de como por o ar de volta nos pulmões.
Nos unimos. E foi então que deixamos de ser duas pessoas - agora éramos apenas duas metades, que, juntas, tornaram-se um inteiro - completo; único. Ele mergulhou fundo no interior do meu ser, e eu fiz o mesmo; nos adentramos; nos invadimos. Nos fizemos escrava e senhor; prisioneiro e soberana; hóspede e anfitriã. Pertencíamos um ao outro, e, mais do que nunca, pertencíamos ao amor.
Não sei dizer quanto tempo permanecemos ali. Minutos, horas, talvez dias...não exisitia noção do tempo ao seu lado; apenas a noção de nós dois, no infinito de um universo particular.
Mas eu não sabia que aquele infitino duraria apenas até o fim do nosso precioso momento; o reencontro revelou-se despedida.
Uma lembrança é eterna enquanto ainda possuirmos a capacidade de mantê-la viva e pulsante em nossos corações. Ela permanecerá viva enquanto vivos permanecermos.
Essa foi a última vez que o vi, e, desde então, tenho me perguntado: "Onde está você agora além de aqui, dentro de mim?"