Capítulo Encerrado

Há dias assim. Quero limpar da minha memória as lembranças e voa-me o espírito para aí. Tempos duros os do fim do Império. Já nascidos em Angola, os meus pais e uma avó, faziam bem a ponte entre duas distintas maneiras de ser e de estar. Uns, com mais informação e mais cultura colonial, defendiam que a família era, antes de mais nada, portuguesa e, como tal, haveria de sentir o que fosse mais conveniente para o Portugal entendido numa absurda dimensão multi continental; outros, de sangue mais africano, mais próximos da terra e das suas gentes, mais capazes de sentir, com espírito mulato, os valores e dramas locais, sentiam-se dali. Brancos de pele mas aptos a compreender e aceitar a negritude tal como a apregoava Senghor, o velho líder, falavam o dialecto local, tinham amigos na sanzala, trabalhavam com eles ombro a ombro onde fosse preciso. As discussões estavam vedadas e viver era bem mais importante que guerrear ainda que só com palavras. Lembro-me das várias vezes em que fiquei contigo, na palhota grande. Moravas logo a seguir à segunda curva da estrada, a caminho do rio. De lá podíamos ver o gado, as linhas do sisal, as colunas de poeira sempre que uma viatura avançava por ali. Cozinhavas numa espécie de fogão feito de arcos retirados aos barris do vinho e abanavas as brasas com um pedaço de cartão ou, antes do espevitar da chama, soprando o lume. Eras muito bonita. Tinhas um porte altivo, peitos firmes, ancas largas e um sorriso maravilhoso. Falavas em português razoável, com acento carregado e dizias palavras no dialecto sempre que te faltava o vocabulário. Gostávamos um do outro mas tínhamos muita gente contra o nosso afecto. Os teus familiares achavam que um branco nunca te daria estabilidade e haveria de deixar-te a seguir. Os meus amigos pensavam que, para mim, eras só mais um caso sexual, puro e duro, inconsequente. Só eu, alguns anos mais novo que tu, achava que éramos muito felizes quando estávamos juntos. Tu, sem dizeres nada, também achavas o mesmo. Íamos vivendo o nosso caso sem pressões, sem cobranças, sem pensar em nada em termos de futuro. Sempre que se falava nisso, no futuro, descia uma sombra aos teus olhos e os lábios carnudos cerravam-te a boca com firmeza. Fazíamos tudo para apagar as diferenças. Procurava adaptar-me à precariedade da tua casa de adobe e zinco e tu fazias o que podias para me tratar com os cuidados existentes nos lares dos brancos. Cozinhavas comida portuguesa, punhas a mesa à maneira europeia, aprenderas comigo a usar os talheres. Na cama éramos, ambos, tão complementares um do outro, tão naturais no nosso amor, que nunca assomaram às nossas mentes a divergência de mundos que um e o outro protagonizávamos. De manhã ias para o trabalho no escritório da Fazenda. Fazias a limpeza, servias o café, ajudavas na cozinha do refeitório. Eu ia para as aulas embora, antes, passasse por casa para desmanchar a cama, tomar banho e mudar de roupa. Ao tempo era fácil enganar os meus pais por ser nos anexos da casa o meu quarto.

Conheci-te da Rebita da Samacuta. Eras amiga da dona da casa, a Josefa do Miranda, e servias as cervejas com um sorriso aberto, recolhendo as moedas no bolso do avental, puxando a alça do vestido para cima, repetidas vezes. Quando calhava dançavas sozinha, muito sensual, rodando no chão de terra batida ao compasso do merengue, requebrando para a plateia de homens que te olhavam com cobiça. Fugias ao cerco dos mais ousados e rias-te mostrando os dentes lindos, a boca túmida, os olhos de um negro misterioso e profundo. Admirei-me por teres acedido dançar comigo aquela música dolente, à luz mortiça dos dois candeeiros a petróleo, naquela intimidade de ocasião que tornou memorável o nosso encontro. O meu corpo conhecia o teu, beleza doce, pele lisa e cálida, ritmo manso, ternura vaga e o teu aprendia-me como uma espécie de molde onde cabias à perfeição. Nunca mais deixámos de dançar um com o outro mesmo sentindo que a maledicência começava a correr todas as pessoas que vinham ali para esquecer a vida, para se divertirem, para beber tinto, cerveja, cachipembe ou, ainda, para arranjar companhia para a noite. Ficámos assim, sem palavras, amenamente unidos, gozando momentos para mim inolvidáveis. E a noite, aquela noite, arrastou-se até á manhã seguinte. Ajudei a arrumar as cadeiras, recolhi as garrafas, varri o adro, abasteci os candeeiros e lavei os copos que me disseste terem de ficar prontos para a próxima festa. Tudo para ficar mais tempo contigo, para me familiarizar com os teus problemas, para que os teus sentidos me gravassem em ti como os meus já te haviam guardado no meu pensamento. Fui tão diligente que até a mim a Josefa quis pagar o trabalho. Depois, fomos de mão dada a pé, pela berma da estrada deserta e chegámos à tua casa ia o sol alto e já cantavam mil cigarras nos ramos das acácias. Despedimo-nos com um beijo breve e senti que a tua face ainda espreitava na porta entreaberta. Voltei quando me deixaste e fiquei até que o sol forte me acordou na tua cama, só, nu e suado. Vi a caneca de esmalte, o pão e a faca dispostos para mim na mesa da cozinha. Bebi o café que deixaste perto do fogo, vesti-me e saí. A porta não tinha fechadura, amarrava-se com fio de sisal.

Muitas vezes voltei, depois daquela noite. Entrava antes de ti, cozinhava o que havia ou o que levava, punha a mesa e esperava, escutando música baixinho no teu transístor a pilhas, até que chegasses. Sabia os teus tempos, os teus hábitos e conjugava a minha vida de modo a estar sempre por perto nas tuas folgas. Era muito bom quando me abraçavas, quando me beijavas, quando me ensinavas a amar-te mais e melhor. Não tínhamos pudor e ficávamos, horas a fio, a olhar a nudez um do outro como se ambos fossemos a única maravilha do mundo. Quanto tempo durou o nosso romance? Não sei. Sei que o tempo só tinha sentido quando te via e sei que tiveste de me jurar que ficarias a aguardar o meu regresso para que eu fosse para Luanda estudar na universidade. Escrevi-te longas cartas, saudosas, para a posta restante mas tu nunca respondeste. Quando voltei, pelo Natal, na tua casa morava outra gente e de ti só sabiam que voltaras para o Moxico onde tinhas família. O chefe dos correios não pôde devolver as cartas por terem sido, em tempo, levantadas. Perdi-te só porque acreditaste que o nosso amor não tinha futuro. Davas razão a quem te condenava, davas razão à tua própria consciência e fazias tudo para esquecer o que vivemos juntos por ser isso o que todos esperavam de ti. Durante anos não te perdoei nem te esqueci e muitas vezes sonhei com o teu regresso. Depois, guardados no mais íntimo da minha memória, sepultei-te e ao nosso amor para poder continuar a viver com alguma normalidade. E, hoje, finalmente, tive notícias tuas.

Não poderias ficar mais tempo ali. A tua gravidez iria começar a notar-se e havias decidido que isso não seria usado para tentar prender a ti um jovem com educação e aspirações muito diferentes. E querias aquele filho, espécie de recordação do único homem que verdadeiramente amaste e o único que te respeitava dedicando-te um amor sem acentuar as diferenças, puro, absolutamente ingénuo e sentido. Retiravas-te para evitar o que seria uma perseguição certa se afrontasses o teu clã com um filho mestiço e a minha família com pretensões desnecessárias. Criá-lo-ias sozinha, longe, ao abrigo de uma maledicência que, ali, já te pesava. Não foi fácil recomeçar a vida numa cidade diferente nas tuas condições. Mas conseguiste guarida numa Missão católica e ali ficaste os anos seguintes a trabalhar na lavandaria. Um dia, porém, também tu achaste que seria bom esquecer o passado e retomar a normalidade destinada às mulheres da tua condição e idade, mães solteiras, a lutar contra a precariedade dos meios que tinhas para sobreviver e educar o teu filho, o nosso filho. Aceitaste, portanto, a corte de um outro homem e casaste com ele mesmo sem amor. Tudo isto me acabou de contar uma das tuas amigas, pedindo sempre segredo, exigindo que, ao menos, nunca te dissesse o nome dela. E fiquei abalado. Há notícias que nos transformam e aquelas, fortes, insuspeitadas, eram tão determinantes de mudança que, de imediato, fiz renascer a memória dos nossos encontros, de tudo o que ocupou uma tão importante parte de mim. O filho que tiveste, por outro lado, deixava-me indiferente. Era como se fosse um estranho no meio da nossa relação. “ Não quer saber como é, como se chama e com vive o seu filho?”, ela perguntou esperando tudo menos o rotundo não que me saiu da boca. Ainda assim, como me calei, ela descreveu-me uma criança de dez anos, rapaz alto e magro, de cabelo crespo e pele muito clara. Chamava-se Gonçalo, como eu e como eu era calado, estudioso e terno. O padrasto, um mulato já maduro, gosta muito dele. Quis mesmo reconhecê-lo como seu filho, mas tu, Domingas, recusaste. Achavas que isso talvez quisesse eu fazer um dia se a nossa vida se voltasse a tocar, se eu te perdoasse a fuga, se sentisse algum apelo do sangue ou se o rapaz quisesse ser perfilhado pelo pai biológico quando um dia me conhecesse. Em todo o caso, dizia-me a tua amiga, que vivias no terror de ter um dia de me dar explicações ou de, já sem idade para recuperar o amor antigo, ter de me enfrentar lendo repúdio nos meus olhos. Como se, entre nós, isso fosse possível. Sabia desde o início que um dia pesariam muito os quinze anos que nos separavam mas sentia que serias sempre bonita, cuidada, doce e julgava saber, também, que todo o amor se transforma em amizade e respeito, em companheirismo e atenção, no fim da vida.

Ainda resisti, com as minhas recordações e angústias, dois meses. Não queria ver-te mais, dizia-me cérebro, enquanto a vontade era a de correr para ti para te ver ainda que só de longe. E, gravadas as tuas coordenadas no meu coração, fui ao Moxico para saber mais de ti. O primeiro dia, esperei, pacientemente, que saísses da Missão. Era tarde, a luz não deixou que me apercebesse do estrago do tempo no teu rosto. Segui-te de longe até a casa e consegui ver a silhueta do Gonçalo e do teu marido, um velho de cabelo rapado e dorso já curvado. Voltei uma e outra vez até ter de todos uma melhor informação. Voltei nos outros dias, segui o Gonçalo para ver onde era a Escola, meti conversa com ele, aprendi a vê-lo com outros olhos. Inteligente, educado, calmo. Alertado pela mãe, no encontro seguinte fez-me perguntas, perguntou-me o nome, quis saber mais da minha vida mas continuou a aludir ao padrasto como pai, o único que conhecia, o único que queria. Entretanto consegui fazer, também, o levantamento dos hábitos do teu marido, acertei horários e fiz-me encontrado com ele no café. Conversámos muito e pude saber como era harmoniosa a vossa vida, como ele te admirava e respeitava, como fora mais fácil a integração social com as pessoas a pensar que ele era o pai de Gonçalo, como ele amava aquela criança. Só depois de tudo isto forcei a nossa entrevista. Foi dolorosa para ti mas para mim foi como se um capítulo da minha existência se encerrasse para ser possível a vivência plena dos dias que ainda terei para viver. Pediste-me perdão, explicaste-me as tuas razões, falaste nas diferenças, agora exaltadas e choraste, conformada com o rumo que o tempo dera à tua vida. Não querias alterar nada, nem sequer o registo do menino mas acatarias o que eu achasse por bem decidir. Querias muito poupar desgostos ao teu marido, um homem bom. Não lhe falarias deste encontro comigo a menos que eu quisesse reivindicar a paternidade do Gonçalo. Vi o medo a franzir-te a testa, a antiga sombra cair sobre o teu rosto flácido, as mãos a torcerem-se num desespero que pretendia, simplesmente, apagar o passado para que a calma voltasse à tua família. E fui eu quem te pegou nas mãos com amizade. Morrera o amor mas era ternura o que sentia por ti, uma estima que estaria, daqui para a frente, numa outra dimensão do afecto. Eu não queria ser um fantasma ou um perigo eminente. Eu não desejava complicar, enredar ou atrapalhar os teus dias. Senti que te tranquilizavas, que as tuas lágrimas secavam, que retribuías o aperto das mãos e que deixaras de recear olhar para mim na profundidade dos meus olhos. Perguntavas se eu achara lindo o rapaz, se não ficara decepcionado, se ele poderia contar comigo se, um dia, viesse a precisar. Respondi a tudo que sim, dei-te o meu endereço, beijei-te as mãos e saí depois de te garantir que estaria disponível mas…sempre longe. Foi então que, depois de tantos anos, sorriste para mim como antes.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 02/08/2011
Código do texto: T3135362
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