UM SONHO DE LIBERDADE

Virava de meio-dia de um abril ensolarado na estância Santa Luzia e Esmeralda já separava a roupa suja no cesto. Naquele dia de final semana que, aliás, naquele fundo de campo pouco importava ou pouco se sabia se era sábado ou domingo, o trabalho cotidiano e intenso era sempre ou quase sempre o mesmo. Virando a roupa sobre o lençol de casal da cama da sinhá, aberto no chão do quarto, atado nas quatro pontas virava uma trouxa grande.

A pele negra reluzia ao sol e destacava a branca blusa de grosso algodão arremangada a meio braço, roupa que servia para inverno e verão. Já a saia, pela canela, sacudia com o rebolado e com o caminhar esquisito e debochado da escrava de corpo pequeno. Cruzava o campo pisoteando rosetas espinhentas de pés descalços em direção da sanga rasa no potreiro do fundo. Carregando uma grande trouxa de roupa, sumia aos poucos a medida que descia a barranca da sanga.

A fraca correnteza da sanga leva um tropel de espuma branca que escorria da roupa ensaboada, num bailado ondulante ao som das batidas de pau sobre os panos e ao canto afinado da negra escrava. Ajoelhada sobre uma tábua encravada na barranca nem se importava com o sol forte na cabeça, nem a protegia com chapéu ou com pano como faziam as demais escravas da casa. Vaidosa, as vezes parava de lavar roupa para se ver na água da sanga, que refletia o brilhos dos lindos olhos negros.

Foi assim que de repente teve que olhar de novo para entender uma imagem de outro rosto na água. Era de um homem. Negro forte e noviço parecia esperar pacientemente pelo olhar dela. Na verdade esperava que seu cavalo matasse a sede do retorno de um longo trabalho no campo. O cantarolar e as batidas na roupa não a deixaram perceber a chegada dos dois.

Sebastião era escravo assim como esmeralda, porém não havia tido a oportunidade de se encontrar de jeito com a negra, a qual já era responsável por algumas de suas noites de insônia. Os afazeres do campo nunca permitiram uma aproximação maior.

Pouco se falaram, aliás, só ele falou num cumprimento que retirou o chapéu surrado e mostrou o rosto jovial, mas com marcas do trabalho rude. Ela nem respondeu ao seu - boa tarde! A voz travou, o coração disparou num galope que parecia que ia sair pela boca, os seus olhos pararam nas ondas das águas fixados no rosto dele. Teve vontade de correr e se esconder para curtir esta sensação nova de se apaixonar num relâmpago de instante como aquele em que estava acontecendo, o qual não se sabe quanto tempo durou, mas parecia uma eternidade. Tímida, não sabia o que dizer. Nem parecia aquela negra que tagarelava com as outras na casa e não se mixava para responder em desaforos para quem lhe afrontava.

Sebastião percebeu sua fraqueza e não quis lhe deixar mais perturbada. Por este motivo puxou o baio pela rédea que ainda bebia da água da sanga. Boleou a perna e ainda a olhou de novo, porém notou que o silencio era a reação do ele causou naquele coração neste primeiro contato tão próximo e tão íntimo.

Dali em diante a sanga e suas correntezas turvas passaram a testemunhar os encontros e os murmúrios de amor que se mesclavam ao barulho das águas. Em noites de lua cheia em que a claridade encorajava as fugas repentinas, as silhuetas se entrelaçavam cavalgando as ondas da correnteza.

Foram-se muitas noites assim. Até que uma tarde lhe marcou por vez. Sebastião chegou silencioso como sempre, porém com olhos pregados na água e semblante tristonho prenunciava uma despedida. Esmeralda notou que além das vestes normais um lenço vermelho embandeirava uma causa. Lembrando das conversas do sinhô na casa grande sobre a guerra, onde ele dizia que todos os homens deveriam ir para o fronte da guerra, até mesmo os escravos e lutariam como lanceiros negros ao lado dos farroupilhas formando a carga da cavalaria. Seus lindos olhos negros se inundaram como as barrancas da sanga em final de chuvarada. Sebastião não deixou o pranto lhe sufocar, passou a dizer que sua luta era por uma vida futura livre. No retorno da guerra os dois partiriam para um mundo melhor e só deles. Talvez esmeralda nem tenha ouvido isto, diante do desespero da partida.

Ele não deu chance para que o sofrimento se prolongasse. Beijou longamente Esmeralda. Um beijo molhado de lágrimas e suor e ao mesmo tempo ardente como o primeiro. Os corações batiam em descompasso e tão fortes como um som de cascos de uma tropilha de potros. Não se sabe quanto tempo, mas se alguém contasse os minutos pareceram séculos, interrompidos pelo saltar ao lombo do baio que Sebastião fez com a agilidade felina e de quem vai em busca de um tesouro valioso. Ainda viu Esmeralda por entre olhos embaçados e com o braço estendido que segurava uma lança, num grito que ecoou nas casas bradou: - “Liberdade, liberdade”.

Muitas noites se passaram e muitas luas também. As notícias não chegavam e o olhar de Esmeralda não se cansava de mirar a porteira. A ansiedade de contar a novidade do filho que esperava era maior que a vontade de ver o fruto do amor livre. Mesmo que Sebastião retornasse escravo não importava, desde que voltasse.

Assim se passaram os dias e os meses. O silêncio só foi interrompido pelos gritos de um piazito trazido ao mundo com o auxilio da sinhá, que gostava muito de Esmeralda. As vezes o choro se ia noite adentro, como se o guri chamasse pelo pai que não conhecia, percorria os cantos do galpão como um lamento e se perdia ao vento.

A cachorrada da casa já havia se acostumado a correr pelos campos com o guri. Acompanhavam Esmeralda sempre até a sanga. Entravam na água, ele atirava pedra para que os cachorros buscassem. Eram motivos do passar do tempo de uma espera jamais esquecida por ela. Sempre olhando para a água lembrando o reflexo do agora lanceiro negro, e voltava a cantar para não ter o olhar ainda bonito encharcado de lágrimas.

Numa tarde também ensolarada ao mirar as correntezas turvas viu a imagem de um homem. Ela levantou ligeiro e num pulo quase caiu. Chegou até esboçar um grito de alegria, que ficou contido ao ver a figura de um outro cavaleiro. Farrapo e cansado que mal podia falar. Mas trazia pelas rédeas um cavalo, que prontamente foi reconhecido por ela. Era o baio do Sebastião. Percebeu a grande tragédia e não se conteve a gritar: - Não, não. Não pode ser. Seu amor havia tombado na luta.

Em gritos desesperados pedia que Deus a levasse também. Talvez pensando em encontrar Sebastião ou talvez em ser livre finalmente, já que naquele momento viu a esperança da liberdade morrer com o seu amado que havia partido para uma luta que teria a libertação como prêmio.

Caindo de joelhos chorando, nem chegou a perceber que o guri assustado pelos gritos da mãe também gritava e sem saber o que fazer se segurava em sua saia. Neste momento como se uma luz divina lhe abrisse a mente, Esmeralda se deu de conta que havia um ser pequenino que precisava dela e que um dia ainda ia ser livre e que essa conquista deveria ser buscada por ela de alguma forma. E então percebendo que o sonho de liberdade continuava, pegou o guri no colo e tratou de lhe acalmar, sabia que mesmo na querência celestial Sebastião se orgulharia de sua luta, e que ela deveria continuar viva e lutando pelo sonho que um dia foi o preço da sua felicidade.