As cartas do baralho

Existe o amor atual, mas toda história de amor carrega por trás as histórias de outros amores. Todo casal, bem... Na verdade falo aqui de casais normais, pois conheço um homem que casou com a primeira mulher que beijou e apesar de muitos acharem isso lindo, creio serem eles um verdadeiro aborto das relações sociais. Sabem porquê? Porque para saber se quem está ao seu lado é o verdadeiro amor é necessário, antes, se enganar. Enganar-se totalmente, mentir de maneira deslavada a si mesmo e mentir para o outro. Todas as vezes que dizemos eu te amo estamos mentindo. Não amamos a outra pessoa, mas a imagem fantasiosa que criamos dela. Todos os amores são castelos de cartas. Uns duram mais que outros simplesmente porque evitamos deixar a janela aberta e na alcova criada por nós, conseguimos criar fileiras e mais fileiras de cartas, uma em cima da outra. Mas um dia, sem saber o motivo, sentimo-nos asfixiados, o coração clama por novos ares. Nesse momento então olhamos para nosso castelo, grande, bem construído, imponente... e confiantes abrimos um pouco a janela. É fatal! A lufada vem e põe as cartas, todas, ao chão.

Um enorme castelo de cartas tinha acabado de desmoronar para Ananda e a culpa pela janela ter sido aberta constava do fato de não ter conseguido emprego na cidade onde se formara em Artes Plásticas e, sem meios de sustentar-se teve de retornar a cidade natal para viver novamente com a família. Seu amor ficara para trás. Concursado como bibliotecário na faculdade onde Ananda estudou, ele não teve a coragem dos amantes inconseqüentes de abandonar sua estabilidade e atirar-se sem apoio no mar revolto de uma nova vida.

Assim retornou Ananda para a casa. O grande porém desta história é que ela não teve vontade de jogar fora as cartas de seu antigo castelo. Aviso aos leitores, todos nós devemos jogar fora as cartas usadas. Para cada amor um novo baralho, essa deveria ser a máxima universal escrita em todos os diários de adolescentes, em todos as frases inúteis de batepapos virtuais. Mas para Ananda isso não valia e com lágrimas no frio ônibus que forçava-a a voltar ela foi recolhendo uma a uma e guardando em seu coração todas as suas.

Do tempo fez-se a demora e grande foi. Um ano se passou para que Ananda tentasse amar outra vez, mas o homem que escolheu era incongruente com o que ela desejava. Ela não o amava, na verdade queria só lutar, lutar contra a vontade de nunca mais amar.

Assim sendo, insistiu quando não queria freqüentar os lugares para os quais ele a convidava, insistiu mais ainda quando fingiu orgasmos mesmo sentindo nojo de seu gemido feminino e de sua forma delicada de possuí-la e novamente insistiu quando viu que não admirava seu parceiro, que qualquer amigo de seu amante era mais interessante que ele, insistiu ainda quando viu que lendo Bovary, santa protetora das adulteras, era seu namorado que via no lugar do marido dela.

Há um grande erro em insistir-se muito e a prova cabal de que estamos insistindo no vazio do amor é o que podemos chamar de sentido do estranhamento. Esse estranho sentido é despertado em poucos momentos e o principal deles ocorre após o ato sexual. Quando esvaímos todas nossas potencias em tal ato, despimo-nos das proteções que nos cercam, nos despimos do pudor, da decência e das mascaras que constantemente usamos na vida. Sem tais mascaras e proteções estamos como em carne viva, mas a carne em questão paradoxalmente é a da alma, pois ao liberar todas as potencias só nos resta a centelha maior de nosso ser.

Justo nesse momento de total fragilidade é que nos deparamos com a possibilidade do sentido do estranhamento, pois só o grande amor é capaz de prover-nos a manta que protegerá nossa alma. Se estamos, pelo contrário, com uma pessoa qualquer, possivelmente seremos tomados por tal sentido e olharemos o outro, também livre de mascaras e proteções, como a um estranho, caindo sobre nossa cabeça a terrível questão de porquê estamos ali.

E assim,nossa heroína decidiu que não mais ficaria com alguém que nas horas de maior fragilidade lhe parecesse um estranho. Fez o que todos fazem, trancou-se nas obrigações cotidianas, em seu quarto montou um verdadeiro domo, ou melhor uma torre. Cercou-se de livros, bebeu dos teóricos da arte, pesquisou inúmeros artigos e avisou a todos seus amigos e familiares que enlouqueceria para conseguir um mestrado em História da Arte. As paredes de seu burgo tornarem-se intransponíveis, os amigos se irritaram com tantas desculpas para não sair e disseram que Ananda não mais valia a pena. Ela pouco ligou, horas e horas estava na frente de seu laptop escrevendo, lendo e pesquisando.

Todas as histórias do mundo são contos de fadas, os escritores por mais que tentem não fogem dessa premissa. Sempre haverá uma princesa em sua torre, mesmo que a princesa esteja lá por vontade própria, mesmo que o castelo seja o simples dedicar-se brutalmente a um trabalho, mesmo com tudo isso ainda sim teremos uma princesa. A literatura é a vida em letras e ambas são formadas por signos e símbolos, felizes os que vêem além e avançam as páginas sem medo de errar, pois sabem que não há opção mas somente o que está escrito. Numa bela tarde quente, um rapaz tomou coragem, pois está na coragem o primeiro passo para a aproximação. Ouvira falar de Ananda, olhara na internet suas fotos, suas escolhas e seus comentários e tivera certeza de que ela era interessante e perigosa como todas as mulheres bonitas e inteligentes o são. Tinham amigos em comum e de uma conversa usual ouvira que ela se preparava para um mestrado em artes. Sem perda de tempo, buscou uns livros de arte que possivelmente seriam úteis para alguém escrevendo um projeto e avançou, avançou e desejou que ela se descuidasse para que como o peão de xadrez pudesse capturá-la como na jogada en passant. Adentrou a casa de Ananda, apresentou-se e disse que desejava saber se ela se interessava por comprar por preço módico os livros que ele trazia e que podiam ser interessantes para o projeto que, ficara sabendo, ela estava escrevendo.

Ela sabia ser isso um embuste, mas qual de nós pobres humanos não gostamos dos embustes amorosos? Os melhores conquistadores são embusteiros natos, criam uma rede de histórias para capturar a presa. Nesse caso, muitas mulheres creem estar desarmadas contra as perfídias de tais galantes embusteiros. Ledo engano: todas mulheres por natureza percebem, a priori, o engodo ,mas quando de alguma forma seu criador lhes desperta um pequeno interesse, mesmo que infinitesimal, não resistem a verem sua beleza refletida nos olhos dele. Isso buscam as mulheres, sempre, verem-se belas e desejadas no reflexo dos olhos masculinos. Basta para o homem ser um bom embusteiro e possuir olhos límpidos e claros para refletir plenamente a beleza daquela que deseja.

A escolha estará inexoravelmente nas mãos das mulheres, são elas que escolhem, nunca os homens. A mentira inicial é só o gracejo pelo qual demonstra-se seus olhos para que a mulher amada, deseje ou não ver-se refletida neles. (ta repetitivo de novo) Ananda quis ver-se naqueles olhos, talvez porque ele possuísse um cheiro familiar de livros empoeirados, misturado a cigarro e bala de menta. Quando ele foi embora, deixando os livros, seu cheiro ficara impresso no quarto. Ela fechou os olhos, esqueceu-se do projeto cansativo e trabalhoso, respirou varias vezes bem fundo e começou a brincar, perigosamente, com o seu antigo baralho, o baralho das lembranças do seu, e tão seu, bibliotecário.

A parede do burgo estava em ruínas, o príncipe como em todo conto de fada conseguira chegar até a donzela. Começaram a sair. Percebia Ananda que ele era de fácil riso, dócil e muito inteligente. Escrevia roteiros para cinema, mas não os enviava para lugar algum, somente imprimia-os e os deixava em uma gaveta verde. Com o tempo, Ananda começou a frequentar-lhe a casa e deliciava-se horas e horas lendo seus roteiros, páginas e mais páginas de historias inebriantes, bem delineadas, fazendo com que ela desejasse sempre mais. Ler seus roteiros era invadir-lhe a mente e embebido pelo prazer de vê-la lendo seus roteiros ele escrevia sempre mais.

Na primeira vez que fizeram amor foi puro arrebatamento e no fim ela só pensava uma coisa “Além de tudo ele tem dedos mágicos”. Não tivera o sentido do estranhamento, mas ambos cometeram um pecado, logo após se amarem deixaram-se levar pela curiosidade masoquista das histórias passadas. Essa curiosidade doida que bate em nosso peito e força-o contra o externo para saber como foi a história sexual de nosso parceiro. Uns creem que nisso queremos imaginar, por puro fetiche, o corpo que agora nos pertence nas mãos de outro. Há alguns que vêem nisso uma maneira de nos autoafirmarmos, pois se o inquirido, sabiamente, decidir por mentir e contar ao inquiridor somente suas lembranças trágicas e ruins fará com que este sinta-se o rei absoluto de seu prazer e torna-o feliz pelas mentiras cordiais. Ananda, claramente, falou sem lisura nem cordialidade de seus antigos amantes e quedou-se totalmente ao falar do bibliotecário. Não conseguiu esconder que ainda o amava, a voz de Ananda traia-a quando falava e nada disso passou despercebido ao roteirista amador.

A partir desse instante ele percebeu o que operava-se em sua relação. Notou que sem perceber ela citava o bibliotecário todos os dias. Sempre algo remetia a ele: quando viajavam de carro e passavam por uma igreja de beleza arquitetônica dela escapava o comentário de que seu amigo bibliotecário estava agora fazendo arquitetura; quando ele dizia gostar de determinada música o bibliotecário sabia tocá-la no violão; Ananda elogiava a prática incomum de seu amigo bibliotecário com as mãos que eram capazes de construir tudo aquilo que ela desejava, era isso um tapa em sua cara. Ele tão desajeitado em trabalhos manuais. Mas ela ainda adorava seus roteiros, bastava escreve-los, sempre, para encantá-la.

Ele percebeu que ela fazia dele uma tentativa de replica. Replicar o que tivera com o seu grande amor era o que Ananda tentava. Possuía então duas opções: rebelar-se quando descobria que o filme que acabaram de assistir (que por consternado destino tinha sido incrivelmente bom) era uma indicação do bibliotecário, ou, para maior agravo, o filme de domingo, acalentados entre os cobertores e mantas de uma noite fria, nada mais era que um dos filmes mais queridos da idílica época de faculdade, filme que os marcara pelas risadas que deram juntos, ela e seu, mil vezes insuperável, antigo amor.

Todavia não se rebelara, tomara por medida mais acertada a idéia de aceitar-se como replicante e dessa forma continuar ao lado daquela mulher que tanto o encantava, que tanto o preenchia, que tão bem sabia o fazer sorrir, que entregava-lhe o controle da TV para escolher o canal, que o ensinava as coisas da arte e o deixava ao colo como uma criança nas noites de desanimo, covardia ou de pura preguiça.

O segredo das grandes historias de amor está em aceitar. Esta simples palavra carrega o peso e o poder de selar as janelas que trazem os ventos da discórdia, os ventos que jogam para longe nossos castelos de cartas tão bem construídos. Somente aceitando transformamos o quarto onde montamos nosso castelo de cartas em um invólucro tão hermeticamente fechado que nada será capaz de abalar as frágeis estruturas. E assim o roteirista seguiu sua vida, aceitando viver feliz junto ao belo, formoso e portentoso castelo, feito com cartas já antes usadas, feito das lembranças felizes de Ananda com outro homem. Mesmo assim era o castelo de cartas que o fazia feliz.

Luís Figueiredo
Enviado por Luís Figueiredo em 19/07/2011
Código do texto: T3103980
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