Perfeição
Já se foram dois anos desde que o vi pela primeira e única vez. Eu não gostaria que fosse a última, mas pelo desenrolar dos acontecimentos, pela loucura da vida, da correria a que somos submetidos em nome da eficiência; provavelmente aquele dia não se repetirá.
Eu vivia a tranquilidade da rotina, das aparências, das namoradas jamais apresentadas, das piadas entre amigos. Era o mundo perfeito da missa no domingo, do pai orgulhoso, da mãe despreocupada, dos jogos de futebol. Eu era feliz. E hoje me pergunto se tem valido a pena pensar todos os dias, pelo menos uma vez por dia, em um cara que passou apenas um dia comigo. Um garoto que vivia a tranquilidade da rotina, das aparências e da família perfeita, assim como eu.
Desde os meus 13 anos, eu sempre soube o que eu era. Preferia ignorar e me deixar levar pelo vento do destino, até que ele veio a mim. Eu tinha 17 anos, ele também. Eu tinha uma família grande, ele também. Eu estava viajando no litoral com essa família grande, ele também; e assim foram se prolongando as coincidências. Caio era seu nome. A franja caída sobre os olhos não deixava dúvidas quanto à sua timidez. O corpo franzino, a pele branca, o jeito simples de se expressar; tudo me encantava. Eu me sentia desajeitado perto dele. Nunca havia sentido algo tão espontâneo e forte daquela maneira por alguém. As paixonites passageiras, os rolos noturnos impulsionados pelo álcool e os encontros jamais consumados marcados via internet nunca me proporcionaram aquilo que uma simples troca de frases num quiosque estava me fazendo. Eu estava louco. Puxando assunto com um garoto desconhecido, sem me preocupar se a minha família perfeita olhava. Ao que parece, ele também não se preocupava se a sua família perfeita também olhava. A conversa era boa, era simples, desprendida.
Em menos de 10 minutos descobri em que cidade ele morava, aonde costumava ficar por ali, descobri que ele adora cães, que tem uma irmãzinha que muito o pertuba, que as vezes se sente um pouco sozinho. Disse a ele que a solidão era o mal do século, como havia dito meu ídolo, Renato Russo. Estava aí mais uma das muitas semelhanças e coincidências. Renato também era seu ídolo e modelo. A dúvida que ainda perdurava em minha mente havia se dissipado. Eu tinha certeza de que ele também era um dos anormais que meu pai tanto criticava. Discretamente anotei o número de seu celular, e ele o meu. Amizades-relâmpago costumam ser tão ou mais preciosas quanto aquelas cultivadas por anos. No fundo, eu não queria apenas amizade, não era o que meu coração pedia.
Assim que chegamos à casa de praia, minha inquietude começou a intrigar toda a família perfeita. A perfeição era tanta que nada que escapasse à normalidade da rotina e dos padrões passava despercebido. Não me aguentei nem vinte minutos, eu tinha que ligar. No mesmo quiosque nos encontraríamos, ao final da tarde, como deveria ser.
Eu me sentia feliz sendo um anormal. Ao menos naquele momento, eu me senti livre. Mais do que isso, me senti íntegro. Nossa integridade pode valer muito pouco, mas é tudo o que realmente temos. Não demorou mais que 3 frases para que o corpo tomasse o controle da mente e o pecado acontecesse. Foi apenas um beijo, mas foi mais significativo que todos os beijos insossos e frios que eu havia tido até aquele dia. Aquele sim foi meu primeiro beijo. O abraço que se seguiu foi tão reconfortante quanto o que minha mãe costumava me dar quando eu esfolava meu joelho na infância. Aquilo não podia ser pecado, não podia ser tão anormal. Infelizmente o momento foi tão singular que eu não percebi o olhar de reprovação de meu irmão mais velho, a apenas 5 metros de onde nós estávamos. A areia entrou na minha garganta, causando irritação. Os socos doíam muito mais do que se fosse numa briga comum. Mas aquilo não aconteceu, nada aconteceu, apenas tinha sido assaltado por ladrões muito violentos. Meu celular foi roubado. Ou destruído. Só consegui ver Caio correndo, provavelmente o nariz dele sangraria mais. Aqueles ladrões eram realmente violentos. Aquele que devia ser meu modelo estava apenas zelando pela perfeição de nossa família. E aquele pecado que ele tinha visto jamais aconteceu. Sim, pois foram os ladrões, tão violentos.
Fomos embora no dia seguinte, já que a violência naquele litoral era demais para uma família tão perfeita. E o número do celular de Caio se perdeu. Eu procurei na internet avidamente, mas eu só tinha um nome e uma cidade. Um dia resolvi ir até lá, e andei sem rumo. Eu só queria ver um rosto, mas não consegui. Talvez não fosse aquela cidade, de fato. Talvez ele não se chamasse Caio. E já se vão dois anos pensando e remoendo, sempre deixando a esperança crescer. Talvez surjam outros Caios, talvez ano que vem ele esteja de férias lá novamente. Ou talvez eu deva aceitar essa rotina e normalidade de uma família tão perfeita.
Eu só sei que ele me proporcionou a tarde mais significativa da minha vida, e que provavelmente jamais se repetirá. Talvez a amizade crescesse, talvez o pecado e a anormalidade fossem nossos motes, nossos estilos de vida. Mas tudo acabou tão rápido quanto começou, em nome da perfeição familiar.