Marcha Fúnebre
O relógio de cabeceira gritava novamente. Ela abriu os olhos e fitou o teto com um suspiro; um misto de dor e de cansaço. Desviou a atenção para a janela, onde as cortinas outrora brancas, agora num tom amarelado, se moviam para dentro e para fora do quarto. Era como se o mundo as respirasse, e as expirasse. Respirasse e expirasse, respirasse e expirasse...incessantemente. Outro suspiro. Pensou novamente naquilo, mas afastou o pensamento numa careta. Decidiu por fim levantar-se, já que não sobrara a ela outra opção.
Empurrou a porta do banheiro, que rangiu insatisfeita. Acendeu as luzes e olhou-se no espelho. Quem viu, não era mais Ana dos Santos Medeiros, engenheira química, filha e esposa dedicada. Mas sim, um corpo. Uma carcaça, sem alma. Ainda era Ana dos Santos Medeiros, engenheira química, filha dedicada. Mas agora era viúva. Via seus olhos cor de mel, afundados em profundas olheiras, o rosto pálido, cansado. Era como se tivesse envelhecido dez anos em apenas um mês. Seus cabelos louros agora pareciam quase brancos, e era como se ela os tivesse mergulhado num tambor com óleo. Fechou os olhos e respirou profundamente. O cheiro de incenso estava impregnado na casa havia uma semana. Um cheiro doce e nostálgico, que trazia a ela lembranças de toda a sua vida. Vida que não tinha mais sentido algum. Abriu a torneira e jogou água gelada no rosto. Seu corpo inteiro estremeceu como se tivesse sido golpeado.
Pôs-se a andar pela casa, impaciente, ansiosa. Abriu os armários e vasculhou à procura de algo que lhe trouxesse fome. Em vão. Fechou-os e tornou a caminhar. Andava como quem espera por algo. Mas Ana não tinha o que esperar. Não mais. Olhou para o relógio com olhos suplicantes. Como se nesse gesto, forçasse o tempo a passar. Seis e vinte e três, o relógio acusou. Voltou para o quarto e abriu a gaveta da cômoda para pegar seu uniforme do trabalho. Vestiu-o e parou em frente ao espelho. Ficou insatisfeita com sua aparência. Não que ela conseguisse melhorá-la, mas talvez, suavizá-la. Tirou a roupa e entrou no chuveiro. O contato da pele com a água muito quente, fez a moça estremecer mais uma vez. Lavou os cabelos e sentou-se no chão, de cabeça baixa. A água doce do chuveiro misturou-se com a salgada dos olhos de uma mulher que havia perdido, há um mês e dois dias, a única razão do seu coração bater. Lembrava-se da carícia do marido, dos seus brilhantes olhos verdes. Tentava não pensar naquilo de novo, mas simplesmente não conseguia desde que o marido a deixara. Ana suspirou e por um segundo, sentiu o cheiro do marido. Em meio à suas lágrimas e à água quente, ela sorriu.
Olhou para suas mãos, e viu novamente sua luva. Branca, com flores bordadas em dourado. Combinando perfeitamente com o vestido. Por ser primavera, as flores deixaram um leve e adocicado aroma no ar. Um dia perfeito para um casamento ao ar livre, pensou ela na ocasião. Enquanto se dirigia ao altar, para os braços de seu amado, Ana olhou ao longe, para além da pequena tenda onde se encontrava o padre, e viu o sol se pondo, lançando seus raios e tingindo todo o céu de laranja. Ouvia o baixo murmúrio dos seus convidados, logicamente dizendo o quanto ela estava maravilhosamente encantadora naquele vestido de seda, e o som de alguns pássaros ao longe. Andorinhas, talvez? Mas o som predominante era o da marcha nupcial. O sonho de toda mulher. Aquela caminhada deve ter durado de vinte a trinta segundos, mas para Ana, o tempo estava quase congelado. O mundo se movia lentamente, até preguiçosamente. As cores do jardim saltavam aos seus olhos, animadas, também festejando a união. É claro que não passava pela sua cabeça que aquilo tudo acabaria numa avenida, um ano e três meses depois. Ela não imaginava que todo aquele lindo sonho, seria estraçalhado por um caminhão. Por um motorista distraído e sonolento.
Ana acordou do transe com o barulho estridente do telefone. Obviamente seu horário de entrada na firma para qual trabalhava, já havia passado e ela se surpreendeu ao perceber que inconscientemente entrara no banho apenas para que isso acontecesse. Ela não se sentia bem no trabalho. Ter que pensar, fazer cálculos, obedecer. Tentara manter a cabeça fria e comparecer ao trabalho quatro dias na semana passada, mas sempre acabava chorando descontroladamente em uma das cabines do banheiro. Saiu do boxe e enrolou-se na toalha. Correu para a sala e atendeu ao telefone. Era sua chefe.
- Sim Ana, eu entendo sua situação, mas você precisa entender a nossa também... você é a minha melhor funcionária, e faz falta aqui...mas já faz um mês Ana, se você não vier ainda hoje, eu infelizmente terei de contratar outra pessoa. Espero que você entenda. Sinto muito.
Ana tentou protestar, dizer que iria, mas as palavras não se formavam em sua boca. Ela apenas ficou parada, molhada e enrolada na toalha, no meio da sua sala, com a boca aberta e uma expressão mórbida. Ficou assim por tanto tempo que sua chefe deu um suspiro desapontado, disse ‘’espero que você venha, Ana’’ e desligou.
A moça deu um pequeno grito, e correu para o quarto. Achou que deveria usar uma roupa mais elaborada, e então abriu o guarda roupas. O que havia lá dentro a fez dar um passo para trás. Era um paletó do seu marido. Sabia de algum jeito que não deveria ter ficado surpresa com aquilo, mas desde o ocorrido, não havia aberto mais o guarda roupas. A não ser no dia do enterro. Ela caminhou novamente para frente, com as mãos estendidas, como um cego procurando algo em que se apoiar. Seus olhos marejados viraram duas poças vermelhas assim que suas mãos tocaram o paletó. Ela tirou-o do cabide e deitou-se com ele na cama, esquecendo-se por completo do trabalho. Agarrava-se ao paletó como uma criança se agarra à coberta no escuro amedrontador do quarto.
Procurava incessantemente um motivo para não fazê-lo. Mãe. Velha, incapacitada de fazer qualquer coisa sozinha, até de pensar. Pai. Morto. Não tinha filhos, nem animais de estimação. Irmã. Não tinha muito contato com ela, nunca fora sua melhor amiga, e, Ana tina certeza, ela não acharia a ideia de todo o mal. Chorando, Ana fechou os olhos e adormeceu.
Acordou por volta das nove horas. Sentou-se na cama e olhou para o paletó, úmido onde deitara a cabeça. Sentia uma tremenda dor no corpo, os olhos inchados, a cabeça latejando. Seu quarto girava, girava e girava. Ela sentiu o vômito subindo-lhe pela garganta e correu ao banheiro. Enquanto lavava o rosto, olhou-se no espelho, e pela primeira vez, viu como parecia ter emagrecido mais de dez quilos. Talvez o único sintoma bom. Aquela não era Ana dos Santos Medeiros. Não mais. Notou também que suas dores, o vômito, a cabeça latejando, assemelhavam-se em muito com os sintomas de ressaca. ‘’Ressaca de amor’’; pensou ela. E riu. Riu pela última vez.
Voltou ao quarto, e lançou um olhar para o quadro do dia do seu casamento, pendurado à parede. Sentiu um nó em sua garganta, e voltou a chorar. Estava decidida agora. Foi para a cozinha, arrastou uma cadeira até a pia e subiu nela. Abriu e vasculhou o armário de remédios à procura do vidro de anfetamina. Achou-o, e desceu da cadeira. Pôs-se no caminho de volta ao quarto, lentamente. Ela tremia. Muito baixo, quase inaudível, recitava, chorando:
- E se vires que pode merecer-te, alguma cousa, a dor que me ficou, da mágoa, sem remédio de perder-te, roga a Deus, que teus anos encurtou, que tão cedo de cá me leve a ver-te, quão cedo dos teus olhos me levou.*
*Poesia de Luís de Camões.