AMOR INCONDICIONAL
- Pri! Pri! Eu estou apaixonada, Pri!
Repetindo tais palavras sem parar, toda eufórica, Beatriz entrou no barraco da amiga Priscila sem sequer bater à porta. Esta achava-se sentada sobre a cama, fazendo as unhas dos pés. De tanto susto, quase derramou a água da baciinha sobre o piso de cimento grosso.
- Calma, mulher! Que desespero é esse?
- Ontem eu conheci um rapaz maravilhoso, Pri! O melhor homem do mundo! Na verdade ele é meio pretinho, mas...
- Preconceito, Bia? Você?!?!?
- Não, você sabe que não. É que eu sempre gostei de lourinhos, né...
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Foi no coletivo. Beatriz estava em pé, com suas inseparáveis sacolas, equilibrando-se a duras penas, entre solavancos e esfregões. Até que quase a sua frente, uma pessoa que estava sentada levantou-se para descer. Mas, não. Havia um rapaz ainda mais próximo daquele “privilégio dos deuses”, o lugar era dele. Que surpresa! Como um autêntico cavalheiro, o moço o cedeu para a bela menina, permanecendo de pé diante dela. E iniciaram uma daquelas conversas de amenidades.
Quando o rapaz despediu-se para desembarcar, Beatriz, quase instintivamente, levantou-se dizendo que também desceria ali (bem distante do seu destino).
E foram caminhando lentamente, em direção a uma praça, a trocarem relatos de suas vidas. Cintilando por dentro, ela conseguia até ouvir o canto dos passarinhos, sentir o cheiro das flores, enquanto entregava a sua alma a penetrar nos olhos brilhantes de mundo leve daquele moço. Em pouquíssimo tempo, ela já possuía informações para escrever a biografia de Eduardo.
Eduardo tinha vinte e sete anos e era pedreiro. Tendo se casado muito cedo, não tivera condições de terminar a faculdade que iniciara com muito sacrifício, estudando à noite, depois de carregar cimento, areia e brita por todo o dia. Mas àquela altura, já estava separado. Sua ex-esposa perdera a criança que esperava e a partir daí, o casamento se esfacelara. Sim, ele estava absolutamente aberto para um novo amor.
Entre os relatos, os cantos dos passarinhos, os cheiros e cores das flores, elogios e outras levezas, o passar do dia e a chegada da noite, trocaram o primeiro beijo. E a praça, já completamente deserta, fez-se céu para aquele casal... As carícias foram se tornando mais e mais ousadas e a moça viu-se obrigada a conter as mãos perscrutadoras do rapaz. Mas ela também o desejava! E, aos beijos e afagos, foi descendo bem devagarzinho até prostrar-se, de joelhos, diante do corpo másculo. Ele fechou os olhos e levitou na maravilha...
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Os encontros tornaram-se frequentes, o envolvimento cada vez mais intenso e os delírios de amor mais e mais arrebatadores. Beatriz mantinha com extremo sacrifício a sua... “virgindade”. Até que um dia Eduardo falou em morarem juntos. Sim, ela queria, como ela queria! Mas não podia. Tinha a mãezinha doente que morava no interior e que precisava demais dela. Pensava que uma união tão séria pudesse comprometer sua disponibilidade, sua dedicação de filha.
O rapaz, não percebendo o menor sentido naquela justificativa para o adiamento, para a recusa da proposta, pressionava.
E mais algumas semanas se passaram. Era manhã de sábado. Haviam marcado encontro na mesma pracinha em que se beijaram pela primeira vez. Eduardo chegou primeiro. Minutos depois, chegou Beatriz, que embora tentasse disfarçar, estava visivelmente nervosa:
- Vou viajar amanhã. Minha mãe está doente e precisa de mim!
- Mas é sério?
- Parece que sim.
- As coisas estão apertadas lá na obra, mas eu posso telefonar para o meu encarregado, justificar minha ausência no trabalho e ir com você.
- De jeito nenhum! Isso pode prejudicá-lo. Vamos combinar o seguinte: eu vou, resolvo o que tenho para resolver e em uma ou duas semanas eu volto. Vamos ter muito o que conversar, mas se tudo der certo, a gente vai morar junto.
- Jura?
- Vai depender só de você...
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Dois dias depois...
Eduardo acordou com o toque do telefone. Pulou afoitamente da cama:
- Alô!
- Eduardo, é Priscila, a amiga de Beatriz. Estou aqui no Hospital da Faculdade de Medicina, dá pra você vir até aqui?
- Meu Deus! Aconteceu alguma coisa com minha Beatriz?
- Sim.
Chegando ao hospital, completamente transtornado, o rapaz logo deparou-se com Priscila:
- O que aconteceu?
- Beatriz submeteu-se a uma cirurgia.... As coisas se complicaram... Ela está muito mal!
- Meu Deus do céu! Que cirurgia? Ela não me disse nada!
- Tem muita coisa que você precisa saber. Há muitos anos, Bia vem juntando dinheiro para fazer essa cirurgia. E depois que ela o conheceu, ficou mais ansiosa ainda para realizá-la, pois temia que você não a aceitasse quando soubesse de tudo. A viagem para a casa da mãe era mentira, sua família toda a desprezou quando ainda era adolescente. Bom, a verdade é que Bia nasceu homem e acaba de fazer uma Cirurgia de Redesignação Sexual, que os médicos chamam de... genitoplastia de feminilização.
- Eu preciso vê-la.
- Eu já expliquei a situação aos cirurgiões e eles autorizaram a sua entrada.
O rapaz, completamente em pânico, sentindo-se no cerne do inferno, penetrou a passos lentos naquela sala que exalava o cheiro químico da doença. Lá estava Beatriz, aquele corpo frágil, invadido por tubos, monitores e seus ruídos enlouquecedores. As suas meigas feições estavam apagadas... A pele morena estava pálida e sem viço... Os lindos cabelos negros, mal acomodados sob a touca...
- Ô, meu amor... Ô, meu amor... Por que você fez isso? Eu sempre soube, desde a primeira vez em que a vi. Como você é inocente! Como pôde achar que se engana um homem assim? Mas eu a amo do jeitinho que é, porque jamais vi, em nenhuma mulher, esse olhar acolhedor e delicado que fala por si, essa sede de viver e de amar que você traz no sorriso, na sua voz singularmente doce. Sabe, Beatriz, encontrar um amor tão pleno é privilégio de poucos e eu nunca renunciaria viver essa delícia pela ausência, em seu corpo, de um órgão genital feminino. Para mim, você é uma mulher, a minha mulher! Eu a amo demais, demais, demais!
As frequências dos monitores se alteraram, alguma coisa grave acontecia. Eduardo pôs-se a gritar por socorro! Imediatamente entraram médicos e enfermeiros, todos aflitos, tentando, em vão, reanimá-la. Sim, ela estava morta!
Eduardo ainda pôde notar, no semblante de Beatriz, os primeiros vestígios do seu sorriso lindo e um fio de lágrima que escorria-lhe pela face...