Leonor, a Pintora
A primeira bofetada que me deu marcou-me os dedos na cara e arrebentou-me a boca. Encolhi-me, estupefacta. Nunca antes isso acontecera embora ele tivesse vindo a ficar cada vez mais áspero à medida que a cegueira progredia. Com a casa para pagar e as crianças ainda em idade escolar as despesas ficaram incomportáveis. As obras já não se vendiam como anteriormente e o galerista passou a dizer que não poderia adiantar mais dinheiro porque as coisas já nada tinham a ver com a pintura que António Lima fazia e que tão apreciada fora nos idos oitenta. Foi o desespero que levou o meu marido a pedir-me que pintasse por ele procurando seguir as instruções que daria com o máximo de pormenor. Aceitei, entusiasmada, a pensar, ingenuamente, que as coisas talvez se pudessem compor assim. Recordava que tinha jeito para desenho e que, além disso, me empenharia totalmente para poder ajudar o pai dos meus filhos naquela fase terrível da nossa vida. Tentei ser absolutamente fiel ao que ele pedia e ainda quando me parecesse anacrónico fazia sem me opor ou sequer comentar. Com a unha ele riscava, na palma da minha mão, os elementos e ia dizendo em que quadrado da tela haveriam de ser pintados e em que cor. Era quase como jogar à batalha naval, embora ele também usasse a analogia com os ponteiros das horas e longas explicações para a feitura da cor pretendida, da marcação dos limites, da organização dos planos, da espessura das tintas. Nas dez e cinco o que tens feito? Perguntava. E no espaço da uma e dez?
O tempo acabou por suavizar a tarefa porque a preparação dos pigmentos, a limpeza de pincéis ou a sua ordem na bancada e a utilização das técnicas já não tinham segredos para mim. Naquele dia, ao pintar no limite de uma superfície ainda fresca a tinta espalhou-se menos controlada e uma mancha ocre, não desejada, invadiu o espaço seguinte levando-me a confessar a necessidade de reparar o estrago antes de prosseguir. Isto enfureceu-o e com a bofetada vieram impropérios de toda a ordem, gritos que acordaram as crianças e chamaram a atenção das vizinhas. Estúpida, desajeitada, desatenta foram alguns dos nomes que me chamou, na altura. A seguir chorou copiosamente mas foi incapaz de se desculpar. Não há afecto que fique imutável perante agressões semelhantes que, a partir daquele dia, passaram a ser constantes. Completamente descontrolado, o meu marido ia perdendo a capacidade de dialogar, de sentir o ambiente, de suportar a infelicidade sozinho. Inteiramente devotada a fazer o que me pedia António, ficava muito pouco tempo para cuidar das crianças, para arrumar a casa, para cozinhar e uma certa tensão passou a fazer parte da minha forma de estar. Crescia em mim a angústia, a raiva, a impotência mas, tal como sempre fizera até ali, continuei a cumprir o que me mandava e a fazer a sua pintura com as cores de uma paleta que tentava aproximar da sua. Ainda sugeri que talvez fosse mais útil eu trabalhar fora de casa, voltar a empregar-me na fábrica de louça ou no escritório da Biblioteca onde nos conhecemos mas a sugestão deixava o meu marido à beira da loucura, tantos eram os ciúmes que sentia e tanto era o seu desespero. Assim, aprendi a ser mais metódica, organizada e veloz para cumprir os meus deveres de mãe e dona de casa sem retirar a meu marido a vontade de trabalhar a tempo inteiro e de ganhar a vida.
E os meses foram passando com a crescente degradação do nosso poder de compra. A duras penas conseguimos, finalmente, uma exposição na Galeria Municipal e António, a um tempo empolgado e nervoso, decidiu que pintaríamos vinte telas novas com a linguagem figurativa que o caracterizava. Todos sabiam que ele via mal mas estávamos proibidos na família de aludir à cegueira embora António já não saísse para se não denunciar. Para todos os efeitos ele continuava a pintar os seus quadros e a impor um estilo que, mesmo mudado, se aceitava como seu. Pelas imagens do passado eu construía as de então e, depois de as executar, descrevia-lhas exaustivamente. Ele corrigia o que estava feito usando abundância de palavras, traços no bloco, riscos na palma da minha mão e, com grande poder de memorização e um insuspeitável rigor, conseguia que eu cumprisse bem a minha missão certificando-se do lugar dos elementos e cromatismos utilizados. Independentemente da minha vontade, no entanto, a pintura saía-me diferente. Mais dúctil, mais fluida, menos rigorosa também. Falávamos disso mas, de outras coisas não voltámos a falar. Havia hiatos de palavras e muitos silêncios que aprendi a preencher com cenas do nosso passado comum. Éramos jovens, recordava, amávamo-nos e vivíamos um para o outro. Sempre fui o seu modelo. Ao tempo ele dizia que nunca me poderia substituir por não haver rosto mais expressivo, corpo melhor talhado, pele mais luminosa. Até com gravidez adiantada eu devia posar para que a pintura lhe saísse a contento. Quando a vista começou a falhar ele tentou pintar figuras tal como as sentia. Eram nubladas, imperfeitas, quase como sombras de um real que lhe escapava da lembrança. Eu, agora, fazia apenas o papel das suas mãos e dos olhos que perdera, funcionando como uma espécie de plasticina que ele modelava à sua vontade a poder de palavras azedas, ralhos e gritos. Tens de ser mais firme na pincelada, pinta como se tivesses mais pressa para evitar que fique tudo muito melado ao jeito das mulheres, vociferava. Eu sou homem, sabes? Então pinta como eu pintava, forte, firme, sem ambiguidades, entendes? E eu, com as lágrimas a correr e tremendas dores nas costas, prosseguia uma hora após outra, um dia a seguir ao outro, só parando quando tinha de sair para vender as telas, pedir dinheiro emprestado ou fazer as compras. Tinha pena de António e escutava, com muita paciência, a sua revolta, a frustração que se manifestava em lágrimas e, tantas vezes, em fúria descontrolada. A conselho do médico passei a incluir-lhe no café, sem ele saber, um calmante que suavizou o nosso relacionamento mas que o fazia dormir mais tempo. Tive então ocasião de lhe contar, com palavras minhas, como tinha solucionado os problemas na pintura, descrevia-lhe o resultado final e afagava-o para lhe dar ânimo. A solução para a sua crescente inatividade foi, paulatinamente, começar a pintar eu sozinha durante a sua ausência. A princípio fazendo coisas à sua maneira mas depois, pintando como me apetecia, os temas que me dava. Já uma vez, desejando vingar-me das suas atitudes, eu ensaiara a liberdade de decisão. Onde seria para colocar azul, punha cinzento, onde era para ser terra, investia em tons fortes como o laranja e o amarelo. As dissonâncias esbatia-as com suavidade de modo a conseguir harmonia no total, exatamente como fazia às telas que António pintava sem controlo de cor, composição ou espaço. Muita gente gostou e alguns até mais que antes saudando uma evolução notável que amenizava a pintura abrindo a obra a uma polivalência de leitura que engrandecia os trabalhos. Só o Armando Cirne, diretor da Galeria, baixou os óculos e pousou em mim o severo olhar crispando os lábios. No mínimo desconfiou do tal “progresso” mas preferiu nada dizer naquela altura. Os novos trabalhos vendiam-se melhor e a folga económica acontecia como uma bênção. A saúde de António, essa, no entanto, continuava a degradar-se. Deixou de ouvir e perdeu apetite. Definhava. Depois de meses de silêncio, a seguir à exposição onde muitas obras se venderam, António deixou de poder acompanhar cada etapa da pintura e limitou-se a sugerir os temas. Era como se sentisse que mais nenhuma exposição haveria para fazer. Sentia que as suas hipóteses se esgotavam no esforço de construir, em tão precária situação, a vintena de trabalhos que a crítica aplaudiu. Já não exigia saber o resultado da pintura que eu ia desenvolvendo nem inquiria sobre o que estava pintado e aonde. Dir-se-ia que, finalmente, aceitava que o seu caminho como artista acabava ali e que, fazer uma pintura por interposta pessoa, talvez não fosse o modo mais honesto de ficar na memória dos seus contemporâneos. E… um dia, devido a uma embolia cerebral, António faleceu. O mundo desabava para mim, agora bruscamente sozinha para enfrentar os problemas. Dor, mágoas, saudade e um tremendo vazio chegavam para me inibir a acção. Algo, no entanto me dizia que era preciso mudar de rumo, crescer como pessoa, ampliar a força para salvar as crianças de mais traumas. António deixava-nos com muitas dificuldades de toda a ordem. No começo, vendi os quadros que ainda tinham semelhanças com o que se conhecia do Mestre e, a seguir, enfrentei o “marchand” tentando vender mais alguns onde a pintura se revelava numa outra dimensão. Estas peças, D. Leonor, não podem ter a assinatura dele, disse-me. São falsas. Ambos corremos riscos se continuarmos a prolongar a carreira de um autor que foi embora e que, nos últimos tempos, tanto fez mudar a sua estética… A ironia tinha um travo amargo mas não era hostil. As minhas lágrimas haviam sensibilizado o homem a quem expunha as premências mais vitais. Alimentação, casa, escola, médico e medicamentos tinham saído da pintura e agora não havia de onde eu pudesse tirar os montantes para fazer face à vida. Havia as crianças para cuidar… Acontece, Leonor, deixe que a trate assim, que vejo em si grandes possibilidades para a pintura e, sem querer ofender a memória do António Lima, seu marido, confesso-me seu admirador. Vou mesmo mais longe para lhe dizer que a acho bem superior a ele como artista plástica. Queria muito ajudá-la e decidi que vou comprar toda a produção que consiga tendo em vista uma exposição a realizar em Lisboa. Só lhe peço que, a partir de agora, corte com tudo o que evoque a obra de seu marido e tente fazer apenas a sua. Afaste-se dos temas dele, da sua paleta, dos elementos que eram uma constante da pintura que aqui mostrávamos. Pense num nome apelativo para assinar os seus trabalhos e ouse tudo o que achar que merece a pena. Não comprarei quadros falhados nem medíocres e esses, os que eu venha a recusar, serão eliminados por aposição de nova pintura ou corte de tela. Concorda? Pagar-lhe-ei o mesmo que ganhava António Lima até que, dentro de um ano, se possa acordar um novo contrato. Chorei de gratidão e vim disposta a encarar este desafio com alegria e coragem. Não tinha já tempo para lamentações ou lágrimas mas um grande complexo de culpa me ia enchendo os pensamentos. Achava-me ingrata e desleal, afinal uma falhada que não soube ajudar o seu homem a fazer a sua carreira até ao fim. Foi então que a pequena cassete apareceu dentro de uma caixa de costura. Com dificuldade pude ler na letra hesitante e baralhada de António, o seu nome e o pedido de que a escutasse só depois da sua morte. Isolei-me para escutar e senti cada palavra, cada pensamento, cada declaração como o regresso aos tempos em que éramos, sem obstáculos, uma só pessoa em dois corpos. Começava por dizer que sabia que não iria durar muito mais e pedia perdão pelos maus momentos a que me sujeitara. Agradecia o esforço para fazer a sua pintura e alimentava a esperança de que, uma vez livre da sua orientação e tutela, a minha sensibilidade florisse no trabalho para continuar a ser a pintora que ele descobrira em mim quando eu contava, descrevia e explicava os resultados a que chegava. Pedia que continuasse, que assumisse o meu talento e fosse capaz de brilhar onde ele havia falhado. Reconhecia em mim a companheira perfeita, o ideal de mulher, esposa e mãe e terminava dizendo-me que até mesmo quando a raiva o dominava sabia que me amava muito acima do que seria normal para quem, como nós, já se conhecia há tantos anos. Ele deixaria de me amar só depois de o seu coração deixar de bater. Nunca as saudades me doeram tanto nem imaginei que alguma vez pudesse deixar de ter o meu amor como referência de vida mas agora tinha a certeza de que António me apoiaria e sabia que o meu destino seria continuar a pintar. O meu nome de artista plástica? Leonor António.
FIM