O Amor Tem Certas Coisas...

Noite. A coruja piava na árvore da casa de madeira.

O bilhete que Heleno encontrara no carpete da entrada lhe dera calafrios: 'Você destruiu meus sonhos...”

A caligrafia era inconfundível. Matias. As lembranças de sua cidade natal ardiam mesmo depois de onze anos. A ferida não cicatrizara. Ainda lhe doía o olhar do parceiro de escalada. 'Covarde! O que importa a opinião desses caipiras?! Fica comigo!...” O povo de Parnaso não aprovara aquela união. Heleno fugira da reprovação e da maledicência. E do amor de uma vida.

'Que brincadeira estúpida! Quem escreveu isso?” Matias morrera há tempos. Cirrose. A bebida fora o amigo certo para anestesiar a falta que Heleno fizera. O coração partido pela traição sangrara até o momento derradeiro.

Uma sensação incômoda tomara-lhe o ânimo. Lembrara-se das juras funestas do companheiro: 'Nem a morte vai me separar de você. Comigo é para sempre!”

O pio da coruja continuava, agourento. Heleno nunca acreditara na vida após a morte. O assunto soava-lhe como conversa de desocupados. Mas naquela noite não tivera certeza de suas convicções. Sentira claramente um caminhar silencioso nos cômodos da casa.

Corroendo-se de temor e remorso, abrira o pequeno baú com suas velhas lembranças. Registros de momentos felizes que se perderam no tempo. Deixara escapar uma lágrima. As mãos trêmulas derrubaram sobre o tapete retratos do passado. A felicidade ali estampada atingia-lhe o espírito como agulhas incandescentes. Um toque familiar pousara-lhe sobre o ombro. 'Heleno...” Saltara da cama e refugiara-se ao lado da cômoda. Não via ninguém no quarto. 'Heleno...” Perseguido por um espectro. Não merecia esse castigo. Já não bastara todo o seu carma? O rapaz de Parnaso, amado por todos, para quem tudo parecera possível, excluído e rejeitado por suas opções. 'Que vida inútil! Que trajetória vazia!” Todos os planos, todas as expectativas. Nada tinha sentido. 'Heleno, querido...” Olhara em pânico para a foto do amado no chão, sorrindo. Pegara na gaveta o Colt .38, dado por seu pai. 'Um brinquedo de macho!” Fechara os olhos. A explosão dissipara-se na noite.

Matias sorrira. 'Juntos de novo.”

Sobre a casa de Heleno, a coruja alçara vôo e sumira no céu escuro.