REENCONTRO

A minha vontade dividia-se, paradoxal, entre mergulhar nos teus olhos negros e neles desaparecer ou desatar a fugir para um mundo onde pudesse readquirir a tranquilidade que, vendo-te, acabava irremediavelmente. Disparava o coração, suava, ardiam-me os olhos, e as mãos, aves tontas, perdiam o jeito de segurar, prender ou repousar quando estavas perto. E estavas tantas vezes depois que aceitei morar com a tua família, no casarão da avenida Brito Godins! Tinha a certeza de que isto era o amor. Ou seria paixão? As duas coisas, amor e paixão, sobrepostas, talvez aconteçam em gente inexperiente e jovem, como eu era. Depois da comissão de serviço no Exército, eu aguardava pelo regresso a Portugal e tu, recém-chegada a África, ias para ganhar a vida e para esquecer antigas mágoas. As nossas vidas cruzavam-se ali mas estavam destinadas a separar-se logo a seguir. Senti que também me olhavas com interesse mas achei ser impossível que os nossos destinos pudessem ser comuns. E sofria. Curiosa era a forma como eu ignorava toda a gente. Era como se, além de ti, nada mais houvesse com interesse, capaz de me mobilizar e manter atento. Alheado, o mundo resumia-se ao teu corpo, ao cheiro suave da tua roupa, ao brilho dos cabelos atados sob o lenço estampado. Há seguramente uns três dias que, com mais uma crise de paludismo, eu permanecia deitado. Via-te passar no corredor e ansiava pela hora da refeição na expectativa de seres tu a trazer-me a bandeja, a aconchegar-me a roupa…Tu eras tudo o que eu queria, tudo o que fazia sentido na minha vida, a pessoa mais fascinante à face da terra. Como eras linda, elegante, doce, sensual… Como seria ter-te nos meus braços, poder beijar os teus lábios, fundir-me em ti? E a febre subia, o cansaço tomava conta do meu corpo por vagas, com hora marcada, e os meus pensamentos resumidos, tinham-te como única estrela no firmamento que inventava para me sentir confortável. Nunca vieste trazer-me a comida nem a medicação. Limitavas-te a ficar sob o aro da porta a olhar para mim, sorrindo. Venci o constrangimento e pedi-te ajuda para me levantar e tu aproximaste-te, finalmente. Tocaste-me. Recordo isso como um dos mais fortes abalos que tive. Tremia e suava, estoirava por dentro em tensa alegria, emocionalmente. Sentimento, vontade de afagar-te, erotismo contido e uma súbita certeza de ser correspondido faziam com que o riso franco escancarasse para ti o meu coração. Foi muito forte o nosso contacto de mãos e o abalo consequente dispensou as palavras que se estrangulavam em mim, presas na garganta. A vontade de estar junto a ti e a junção da pele dos nossos dedos acabaria com a última resistência. Voltaste, deslizando no escuro, logo que a casa, mergulhada em sombras e silêncio, te deixou o caminho livre para a minha cama. Amámo-nos com total entrega e muita paixão, reprimindo palavras e sons, evitando ruídos, adivinhando-nos naquele escuro denso, quase material.

No dia seguinte passaste a tratar de mim e todos os teus momentos se torciam para me incluir, todos os teus percursos culminavam no meu quarto. A ordem de embarque veio a seguir mas ainda tivemos tempo de trocar juras de amor e de marcar encontro no Rossio, em Lisboa, junto ao Arco de Bandeira, um ano depois, justamente às 10 horas de 22 de Dezembro do ano seguinte. Pagarias as dívidas, arrumarias os casos pendentes da tua vida e terias tempo para organizar a retirada sem maiores explicações. Decidimos assim, por puro romantismo, e também porque não conhecias bem Lisboa. Além disso, disseste-me, na capital, os caminhos, todos os caminhos, vão do Tejo ao infinito. Cheguei ainda convalescente. Doía-me a tua ausência e ninguém havia para justificar o regresso a uma casa enorme, de muitos quartos sem esquadria, a bordejar a praça das Amoreiras onde o meu Pai, alienado e senil, se abandonava aos cuidados de uma irmã igualmente velha. Ninguém me esperava e a minha cidade pareceu-me hostil. Lisboa estava cinzenta, chuvosa e fria. Voltei à antiga ocupação. Encadernava livros, relatórios, jornais, revistas. A maioria sem grandes preocupações e sempre com cor escolhida pelos clientes. Castanho, vermelho, azul ou cinzento eram as opções. Lettering a negro, tipo de letra thimes ou arial, corpo variando entre o oito da nenhuma importância e o dezoito dos títulos. O trabalho era repetitivo, monótono e asfixiante o cheiro de papel velho, das colas, das anilinas e dos ácidos da têmpera. Deixei tudo arrumado, achei tudo no seu lugar sob uma fina camada de pó. Gradualmente, apareceram os antigos clientes, outros novos e, por fim, o senhor Vicente Castro, colecionador de raridades, detentor de edições inteiras para preservar, encadernar, enriquecer. Queria tudo do melhor a começar na carneira das capas e a terminar nas vinhetas das lombadas, gravadas a buril e ferro quente, douradas com subtileza para que prevalecesse o bom gosto. Pagava bem e prontamente. De cliente passou a amigo e a colaborador. Aprendi, então, com ele, a ver o mundo com cores mais sóbrias, exaustivamente, com pormenores que, a vida inteira, me escaparam. Os pontos para que me chamava a atenção iam de pequenas coisas como cristais mínimos ou insetos, à luminosidade do céu. Nada é feio ou destituído de interesse, Vítor, disse-me um dia. Nada deve ser analisado de ânimo leve, dizia. Muitas vezes a função justifica a forma, o cheiro, a cor ou o sabor. Eu sabia isto de modo intuitivo mas com Vicente Castro, o saber organizava-se nas suas palavras, crescia nos seus gestos ponderados e acabava a ganhar espaço no meu cérebro antes de ficar a impregnar, completamente, o meu coração. Era uma felicidade tratar dos seus livros, da reparação das páginas à costura, da escolha da letra à execução cuidada da vincagem. Queria muito agradar-lhe, beber a sua sabedoria, tornar-me sensível a tudo o que lhe merecia cuidado. Se, como ele prometia, conseguíssemos trabalho permanente da Biblioteca Nacional, acabava com os relatórios de empresa, com os trabalhos sem requinte e ficaria, de corpo e alma, a recuperar e proteger as muitas preciosidades que viriam. Lê este, Vítor. Toma particular atenção à descrição das personagens e depois dir-me-às o que pensas do trabalho. Aposto que vais querer fazê-lo perfeito. Ainda mais perfeito, acrescentava. Falávamos de tudo em conversas pausadas, suaves, eruditas. A vida e a morte, a vida e a vida, o amor e o sexo, o afeto entre as pessoas e a escolha daquelas que passariam, pela estima, a ser parte integrante de nós mesmos. O teu caso amoroso, disse-me quando acabei de lhe contar, é mais paixão que amor. Ficou calado a seguir, como se cada vocábulo se lhe enrolasse na boca e os olhos míopes, bailando por trás das lentes grossas, passeavam pelo meu rosto ansioso. Iam do perlado da testa em suor, ao severo das linhas firmes em que se fechava a minha fisionomia. Sentia um calor estranho a tomar-me os lábios, a expandir para a pele da cara e senti que a boca se me secava, crispada. Pressionei-o a continuar e ele decidiu-se pela paixão. No nosso caso não havia amor, só atracão física, sexo, carne, sede, temperamento. Dentro de um ano, declarou, alguém vai faltar ao encontro ou esse encontro vai deixar de ser lembrado na vossa mente. Jurei-lhe que não seria esse o nosso caso e Castro, educadamente, voltou à conferência dos capítulos e à escolha dos tipos a usar naquela encadernação.

Os primeiros meses foram muito difíceis. A tua imagem era uma obsessão constante. Delirava como se estivesse com febre, sonhava frequentemente, desejava adormecer logo para ter-te nos meus devaneios ou decidia, simplesmente, permanecer acordado para ficar a pensar em ti sem interrupções ou interferências. Via-te na minha cama, rememorava a nossa ligação, os beijos, a vontade de ficar grudado a ti como se fosse mais um pedaço do teu corpo. E tinha a tua boca carnuda, a lisura dos teus seios no meu peito, as tuas pernas a envolverem-me numa prisão maravilhosa. Odores, sons, formas, o toque macio da pele, ardente. Tudo evocava para que vivesses em mim, para que ficasses, gravada, onde eu próprio me definia. Queria anular-me, ser parte da maravilha que eras fosse qual fosse o ângulo da análise. Tornou-se impossível comparar-te com outras por ser nítido que as vencerias de imediato e só a ideia de te submeter a esse exercício era sentida como uma torpe traição. Vivia a esperar as tuas cartas e lia, nelas, o que não traziam. Escrevias mal, com uma grafia arrastada e penosa, em vocabulário pobre e com excessivas redundâncias. Amor, amor, amor. Beijos, beijos e mais beijos. E isso me bastava. O papel ficava lindo, colorido, luminoso. O que dizias, como toada, era para mim objeto de culto e os sobrescritos, atados com uma fita de seda, acumulavam-se nos meus bolsos, sempre. Relia-os, alisava-os, procurava neles as palavras que amontoavas na folha, invariavelmente singela, que guardavam. Queria ver-te, sentir-te, saber que tocaras aquelas folhas e que ninguém devassara o seu interior onde sempre te achava bela, apetecível, amante.

Um dia faleceu o meu Pai. A burocracia do funeral, o ter de tomar decisões, a ponderação sobre a casa que também pertencia à minha velha tia, o arrumar daquela vida complexa e enredada por anos de descaso e doença, forçaram-me a agir muito mais, mais vezes e de modo mais constante. Ficava-me pouco tempo para o teu culto mas voltavas à noite de vez em quando. Escrevi menos nessa altura e a tua escrita diminuiu também. Aquela chama intensa, deixara de brilhar todos os dias. Ainda te percebia como vital e única mas deixei de ver-te como deusa. Acabavas mais próxima, mais acessível, mais capaz de fornecer imagens fortes para as minhas fantasias. Vinhas, sempre, às minhas orgias solitárias mas não ficavas a morar nos sonhos seguintes. E, um dia, faltaste de todo. Não te vi na minha memória, não estavas nos meus pensamentos, deixavas um espaço vazio no meu coração e senti que levarias tempo a voltar.

Foi uma grande surpresa ver-te, no Rossio, naquela tarde. Estavas junto à Fonte e mexias na água de olhar distante. Eram dezassete horas e eu falhara o encontro. Tu, acabaras de chegar e também só muito depois te ocorrera passar por ali. Vimo-nos. De repente veio-nos à lembrança todas as nossas horas comuns e o meu coração saltou, a pele voltou a sentir a tua presença e a voz, tal como da outra vez, ficou a raspar na minha garganta. Afinal és bem mais baixo do que eu pensei, disseste por fim. Naquela altura só raras vezes te vi de pé… dir-se-ia que era um queixume a tua constatação. Desculpa pelo muito tempo que te fiz esperar mas a hora passou-me por completo e até na data tive dúvidas, acrescentaste. Foi há um ano e nunca mais falámos nisso. Se não tivesse de vir aqui tratar dos negócios da família nem mais me voltaria a lembrar do combinado, concluíste com dolorosa sinceridade abrindo o teu melhor sorriso. Também a mim parecias diferente, talvez mais mulher, mais opulenta de formas, menos romântica. A verdade é que continuas a fazer parte da minha vida e, só por isso, demos as mãos e nos dirigimos para a porta da Igreja de S.Domingos fazendo o percurso que pedias. Uma mulher vendia ali imagens da virgem de Fátima em tons de azul. A fé tinha, nelas, uma utilidade extra: anunciavam a chuva ou o bom tempo e, algumas, até brilhavam no escuro. Alinhavam-se num tabuleiro equilibrado num banco de madeira. Justamente quando passávamos a briga dos rapazes pôs, de repente, o Largo em rebuliço. A vendedora de imagens foi abalroada e as santinhas voaram, em desalinho, pelo chão. Transtornaste-te. A crispação do rosto, os olhos aflitos, os teus gritos e um pânico visceral davam-te um aspeto terrível, muito mais perto da vulgaridade sórdida que da mulher linda dos meus sonhos. Não te sabia supersticiosa mas a verdade é que tudo em ti se mudou como resposta àquele sinal, como lhe chamaste.

Não te sabia tão baixo, repetiste. E eu percebi ser demasiado baixo para ter créditos na tua vida sentimental. O meu tempo, no teu coração, acabara. Só as recordações não bastam nem se reaquece a ternura. Ficámos, portanto, silenciosos, a olhar um para o outro. Estávamos distantes, separados, ausentes e um certo gelo contornava os nossos corpos agora apreciados com novo rigor. Vemo-nos por aí, Vítor. Não vale a pena marcarmos encontro. Ando muito esquecida, disseste. Tens razão Helena, não vale a pena.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 30/06/2011
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