Quando eu morri

Era uma tarde fria, cinza, enquanto eu estava no meu quarto e senti uma forte pressão no peito e de imediato levei a minha mão a ele. O ar me falta, o desespero e a vontade de gritar me tomam por completo por um lado; e já por outro, o conformismo com sua voz doce e infantil me diz: “Aceite, acabou”.

Não aceito, como pode alguém como eu morrer de repente?

Minha consciência de pobre e mortal humano me pergunta. Talvez fossem os cigarros, as bebidas e toda a vida desregrada que levei até o dia de ir pro além. E enquanto vejo a minha vida ir por água abaixo, como há de acontecer um dia com todos os seres desse mundo, vejo a minha mãe a chorar e abraçar o meu corpo que agoniza e luta inutilmente pelo destino que o atingiu. A noticia caiu como uma bomba, não só na família e nos amigos, mas como também nos vizinhos do bairro onde morava. Mas por um certo sadismo ou sabe-se lá o que, eu não vi a luz que todos dizem ver, e tampouco vi nenhum buraco no chão se abrir; ao invés disso, veio alguém. Esse alguém eu não sei explicar como é, e nem sei quem seja... Mas sei que ele tinha um ar sarcástico, um jeito irônico de lidar com as coisas e uma fisionomia estranhamente familiar.

Quando o vi surgindo perto da minha cama, saindo das paredes, tentei debilmente lutar contra ele, gritando coisas do tipo: “Você não vai me levar, saia de perto de mim!” e ele disse com um sorriso no rosto: “-Meu caro Marcos, você acha que sou eu que faço essa parte do trabalho? Eu sou apenas um mensageiro, ou o seu destino, se você preferir...”

Meteu a mão dentro do palitó, abriu uma cigarreira de prata e me ofereceu um cigarro. Hesitei. Logo ele soltou à máxima: “Oras, porque negas? Estás morto mesmo... Pior do que está não fica”. Refleti, e aceitei o cigarro, enquanto ele acendia o seu e me passava o isqueiro, lhe disse: Creio que o senhor me deve algumas respostas, não acha?

E ele disse: “É, lhe devo sim, mas tudo a seu tempo...” Vá lá e abrace a sua mãe, acho que ela merece isso. E prontamente o fiz, não por ordem dele, mas porque eu não sabia que poderia abraçar alguém estando na condição em que estava. Então ele começou novamente:

“Bem, agora que já fizemos a sua despedida com a sua mãe... Vamos caminhar um pouco...” E eu preocupado com a minha mãe disse: Está louco? Eu quero ficar aqui com a minha família! Enquanto ele retruca: “Você não queria respostas? Lhe darei todas, porém, você deve vir comigo. De qualquer forma você já morreu mesmo, não há nada que se possa fazer. Se você quiser saber como esse filme termina... Pode vir. Mas se quiser apodrecer de curiosidade e depois ir para o seu destino, é você que sabe. Já ouviu falar em Livre-Arbítrio?”

Pensei que aquele destino, ou anjo sabia bastante coisa de mim. Dei um ultimo abraço na minha mãe, beijei-lhe a face e fui caminhando com aquele ser rumo ao desconhecido. Enquanto ele disse: “É rapaz, quem diria você por aqui... Achei que você fosse demorar mais.”

E eu?

Eu estava bestificado com aquela situação. Eram muitas coisas para minha cabeça suportar, e prontamente ele disse: “Você está confuso, então me apresentarei... Meu nome nem eu ao menos sei, mas você pode me chamar de anjo, ou de mensageiro, tanto faz”.

Eu: - Bem, então vamos lá Sr. Mensageiro, poderia me dizer porque eu? Quero dizer, tem tanta gente ruim por ai, tanta gente que não presta...

Daí ele me corta e diz: “É, eu sei quem você queria que fosse ao invés de você. A hora dela ainda não chegou, mas acredite, ela sofrerá bem mais do que você...”

- Vai? Disse eu surpreso, e ele balançava a cabeça em sinal de sim.

Mas, vamos fazer uma geral na sua vida... disse o Mensageiro, e continuou: “Você não está indo agora por ira divina, e nem por motivos próprios. O único motivo de você estar indo agora é que a sua hora chegou, sua viagem acabou, seu tempo se esgotou... Sei lá como vocês interpretam isso... Se segure, vamos sair daqui.” E então, como em um piscar de olhos, ele me levou a um bar no estilo anos 40, estávamos sentados em uma mesa bem escondida, praticamente no fundo do recinto e ele levantou a mão enquanto me perguntava: “Scotch?” E respondi: Sim, pouco gelo, e caprichado. Ele mais uma vez sorriu e enquanto a atendente chegava ele disse: “Isso, relaxe, afinal, você não tem mais preocupações...”

Bebíamos Whisky, e ele começou a falar inúmeras coisas da minha vida, com um ar irônico digno de Clark Gable. Mas deu ênfase a um tema ao qual estava as voltas desde antes de minha partida, Amor.

Começou ele: “Bem rapaz, pelo que vejo aqui, você amou, e amou demais! Tem um belo currículo. Ouso dizer que em anos de profissão nunca vi um currículo desses...”

Daí disse: De que adianta? Amei tanto e só me fudi.

Ele riu, riu sonoramente, o que me deixou irado. Logo ele notou e se retratou:

“- Desculpe Marcos, mas é que não pude me conter... Você acha que tudo deu errado, quando pelo contrário, tudo deu certo. Às vezes as coisas não acontecem, porque simplesmente não devem acontecer! Pense assim: Imagina se você se casasse com a primeira mulher que você beijasse, mas depois, você descobrisse que era uma megera, ou que ela não servia para você? Seria trágico, não?”

E interrompendo o gole no whisky, o fitei, ele me sorriu com o sorriso irônico de sempre e fiz sinal para que ele continuasse.

Continuando, disse ele. E me olhava fixamente e dizia coisas que só eu sabia que eram verdade, e desmatava o meu amazonas de ignorância quando me dizia coisas que eu sequer desconfiava.

“Lembra-te da tua primeira namorada? Acho que não preciso citar nomes... Foi o seu primeiro amor. Não deu certo, mas você descobriu o qual bom e qual perigoso o amor pode ser; tanto é que da sua primeira para a sua segunda tem um belo espaço de tempo. A segunda foi a mais notável na minha opinião.”

Interrompi e disse: “Como assim a mais notável? Porra, a que mais me fudeu foi ela! Fiquei ruim a beça por causa daquele namoro! Você diz que ela foi a mais notável por que não estava na minha pele!” E matei o copo de whisky em um só gole. Ele me olhou e disse um simples: “Vamos lá.”

E disse: “Bem, de fato, não irei negar que você ficou mal... Você amou a ela com todas as suas forças, e eu posso lhe dizer que ela também o amou, e o ama ainda.” Tentei interromper e ele apenas levantou a mão, como sinal para que me calasse e continuou com a conclusão dos fatos:

“Ela ainda te ama rapaz, hoje ela vai sentir um aperto no peito e vai querer de qualquer jeito falar com você, vai ligar para a sua casa e ninguém atenderá, uma vez que todos estão às voltas com o seu enterro. Ela vai ficar agoniada, ligará para o seu celular e ninguém vai atender... No fim, ela vai saber da sua morte pelos seus amigos. Para lhe ser franco, o único motivo de você ainda não ter partido, é a mesma.”

Fiquei pasmo. Seria possível isso acontecer?

E como se ele lesse meus pensamentos, ele balançou a cabeça fazendo sinal de sim.

Tem como pedir mais um whisky? E, acho que vou querer mais um de seus cigarros... Falei.

Ele sorriu, abriu à cigarreira, tirou dois cigarros e me deu, e logo após isso, fez sinal à atendente para repetir o pedido.

O whisky chegou, a atendente nos sorriu e logo depois se foi. E o mensageiro continuou a falar da minha vida para mim:

“É Marcos, você não sabia, mas você encontrou a sua alma gêmea, seu par. Era ela.”

Contestei:

- Como podia ser ela se foi ela que me mandou embora? E por causa de uma coisa tão babaca! Uma calça... Se você acompanha a minha vida tanto quanto parece, deve ter visto isso também.

E o mensageiro diz:

“É, eu vi isso, e depois vi o remorso que ela ficou. Você deve entender Marcos que as pessoas de hoje, são frutos de experiências passadas. E você sabe que o passado dela não foi muito bom... Você por outro lado tem o poder de se pôr no lugar das pessoas,e sabe muito de tudo isso que eu acabei de lhe dizer. Só que precisa de vez enquanto que te lembrem disso. O amor foi imenso, vocês se amaram bastante, mas infelizmente, desta vez, foi ela que pôs tudo a perder. Você fez tudo certo.”

Curioso perguntei: Fiz?

E ele: “Sim, você foi sincero, amoroso, carinhoso e pensava de mais em ter um futuro com ela. Teriam até um filho, mas, infelizmente não era à hora certa de ele vir... Sei que você sofre até hoje por isso, mas torno a dizer o velho discurso do começo: As coisas acontecem porque devem acontecer. Não se martirize por algo que já foi, até porque preocupações não irão lhe adiantar muito agora...” O Anjo levantou o copo, e brindamos.

Perguntei a ele: Brindamos a que? Eu já estou morto e não posso dizer “Saúde”... Rimos os dois e ele disse: “Brindemos a um bom descanso, já está de bom tamanho, creio eu.”

Bebemos o primeiro gole, e depois voltamos a conversar.

Perguntei a ele: Falta muito para o meu enterro?

Ele responde: “Não, não... Só algumas horas, nada de muito tempo... Vamos continuar a falar da sua vida amorosa, se você permitir, é claro...”

Porque não? Pensei. E voltamos ao caso do meu ultimo relacionamento.

Daí o anjo continuou a falar: “Ah Marcos, Marcos. Você teve uma sorte que poucas pessoas na Terra têm... Você a encontrou, a sua alma gêmea. Já vi pouquíssimos casos em que isso acontece. É, eu sei que não durou muito, mas o pouco tempo que durou, você considera bom?”

Respondi prontamente que sim, então ele sorriu, deu um trago no cigarro e falou: “Então está certo. Você aprendeu a todas as lições que a vida podia te ensinar em tão pouco tempo... Tem pessoas que levam setenta, oitenta e até noventa anos para isso, e você aprendeu tudo com apenas dezenove. A você os meus sinceros parabéns.”

Sorri meio sem vontade, e ele disse: “Ah meu caro, não fique assim. Já foi, acabou. Se você ficar pensando no passado, no que já acabou, jamais irá para a frente!”

Olhei para ele e lhe perguntei: - Ela vai ir no enterro?

Ele deu um gole no whisky e deu de ombros dizendo: “Só Deus sabe...”

Fiquei intrigado com ele e comecei a lhe fazer perguntas, coisas da vida dele e consegui arrancar algumas coisas. Me disse que era rico, tinha uma família grande e uma esposa que o amava. E que se não fosse um acidente de carro que o matasse, o segundo motivo seria o whisky e os amados cigarros que ele carregava sempre no bolso direito do palitó.

Bem, no meio daquela conversa animada sobre a vida e suas relatividades, ele parou, emudeceu e me olhou com o olhar profundo. Suas únicas palavras foram: “É a hora Marcos, vamos lá.”

E como em um passe de mágica sai do bar dos anos 40 em que estava e fui direto para o cemitério. Vi o tempo cinza, vi as pessoas em meu funeral. Minha mãe, meus familiares, meus amigos e não pude me conter, comecei a chorar. Minhas lagrimas não tinham sabor, não eram salgadas e nem sabia ao certo se estava chorando. Foi quando ele pôs a mão em meu ombro como se estivesse me abraçando e disse: “Coragem homem, já chegamos até aqui. Não me venha desistir agora.” Ele me deu forças para continuar a andar pela rua principal da minha ultima morada terrena. Andando por lá, vi uma menininha, que não devia ter mais do que seis anos. Seus olhos eram lindos, seus cabelos loiros como estamos acostumados a ver nos anjos. Quando ela sai de cima do jazigo em que estava sentada , vem em minha direção, abraça a minha perna e me dá uma flor amarela, que parecia ser um girassol. Depois, com toda a serenidade que as crianças têm, me manda um beijo, e me acena dando adeus. Enquanto eu vou caminhando com o mensageiro ao meu lado, e ele me dizendo para ser forte, e que lá, eu veria muita coisa que me faria sofrer. Chegamos ao lugar do caixão, e fiquei de pé ao lado da minha cabeça, ou do que seria a cabeceira do caixão, não sei explicar ao certo.

E lá vi meus amigos, se abraçando, lembrando de meus feitos. Vi meus familiares chorando e dizendo que eu morri jovem, e que o mundo era injusto... Enfim, todas aquelas coisas que eu dizia antes da minha conformação final. Aproveitei o tempo para abraçá-los. Não só os meus familiares, mas também todos os meus amigos; e lhes dizer coisas como: “Onde estiver, estarei com vocês”, a minha mãe eu beijei e disse que lhe amava baixinho, bem rente ao ouvido. No meu padrasto, dei um abraço. E assim foi.

Quando de repente, senti minha alma com um coração, e ele pulsava descompassado, não sei explicar ao certo o que aconteceu. Foi quando o Mensageiro disse: “Recomponha-se, ela vem vindo.” E me piscou o olho. Ela subia as escadas acelerada, como se quisesse realmente comprovar se eu estava realmente nas condições em que estava.

Ao vê-la, não sabia o que fazer, não tive ação. Fiquei parado enquanto ela irrompia por entre meus amigos, e chorei ao ver o estado em que ela ficou a me ver deitado no caixão. E ela, que nunca foi de derramar uma lágrima sequer, assim como eu, derramou lágrimas por sobre meu corpo. E ao tocar as minhas mãos geladas, eu senti o seu toque em minha alma, como se estivéssemos ligados, como se o mundo mais uma vez não fosse mais nada do que eu e ela.

Sorri, por saber que Anjo não havia mentido para mim, enquanto ele sorria e tentava me chamar, eu só via a minha querida em minha frente. Quando escutei a voz do anjo que disse: “Marcos, acho que você já viu de mais. Temos que ir.”

Lhe disse:

- Deixe ao menos me despedir dela, depois eu vou aonde você quiser! Mas me deixe só por uns minutos.

Ele balançou a cabeça e fez que sim, mas que não me demorasse.

Ela estava abraçada a mim, e beijou a minha boca, e pude sentir mais uma vez o seu beijo e as suas lágrimas salgadas se misturando a ele. E as lágrimas que dela rolavam, rolavam pela minha pele gelada. Foi quando ela me abraçou e disse ao meu ouvido:

“- Meu amor, Marcos. Me desculpa, me desculpa! Por favor, volte para mim, você foi o maior amor que tive em minha vida, e só agora eu pude perceber a tudo isso. Foi preciso te perder para entender que eu sempre te amei, por favor , volta!”

E nesse momento eu fiquei em brasa, tentei inutilmente abraçá-la, lhe beijar e mostrar que eu estava ali, mas, de nada adiantou. O Mensageiro me olhou, e fez sinal com o relógio. E lhe pedi um favor, um ultimo.

- Por favor senhor, eu irei embora agora, mas permita-me ao menos lhe abraçar, deixe-me ao menos sentir o seu abraço mais uma vez. Nada mais vos peço, apenas isto e depois eu irei para onde quiseres, mas me dá apenas isso, deixe-me abraçá-la!

O Anjo fez que sim, e então no meio da cerimônia, eu a abracei e a vi por os braços em torno de seu corpo, como se estivesse abraçando a si mesma. E por meio daquele abraço, lhe falei todas as coisas que eu queria lhe dizer de uma só vez. Todos olharam espantados e ela sorriu emocionada, e seus olhos pararam de verter lágrimas de tristeza, para dar lugar a lágrimas de alegria. Ela foi mais uma vez ao ouvido de meu corpo e disse a seguinte frase:

“Ainda vamos nos encontrar de novo meu amor, com teu abraço eu senti isso.”

Feito isso, tive que ir, o Mensageiro já me chamava pela terceira vez e o caminho para fora da capela do cemitério estava iluminada, não como essa luz de brilho forte a que estamos habituados a ver em filmes, mas em meio a um dia cinzento, era como se houvesse uma falha nas nuvens e o sol tivesse passado por entre ela.

Logo então, ao caminho de minha via crúcis, ou de meu paraíso por assim dizer, disse ao anjo o que acontecera.

Ele somente riu e me olhando disse:

“ - Curta é a vida meu caro, longo é o amor. ”

Marcos Tinguah Vinicius
Enviado por Marcos Tinguah Vinicius em 26/06/2011
Código do texto: T3058342
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