CALEIDOSCÓPIO

Tudo real: meu amor por tuas filhas, meu amor por tua mulher, meu amor, incompreensível amor mistura de tudo pela mulher à minha direita, meu amor por ti, esta ausência de mim.

Na foto estamos todos juntos, todos juntos na foto impossível e real em que estamos. Tenho o rosto muito semelhante ao da tua filha mais velha e nos sorrimos. A mulher à direita me olha como se me amasse, mas não me ama. Tua mulher, a que porta teu sobrenome, me diz nos olhos úmidos: "Sê bem-vinda."

Na nossa foto, outra, reclino-me sobre teu peito e tens o rosto sereno de um sacerdote em pleno ofício.

Assim nos haverão de colher por ruas virtuais – como se colhem as imagens de um caleidoscópio.

As pedrinhas casuais, ou não, das palavras, vão caindo sobre os livros expostos nas estantes, sobre o chão da livraria, enquanto as pessoas a se moverem incessantes vão tecendo os arabescos e as regras de um jogo que não existe.

Ao meu olhar desfilam salas e salas, camada a camada tal cidades escavadas, os invisíveis mundos que não sabemos a pulsarem serpentes sobre a epiderme.

A mulher à direita escreveu-me no espelho de um e-mail: "A este homem estou ligada por toda a eternidade." O punhal rompeu do e-mail a pele, rasgou-me a carne e a minha própria eternidade, bem na altura do peito, e o sangue vivo foi encharcando o corpo dos poemas, o corpo da Poesia.

Por um segundo meu amor desesperado vagueou séculos e aportou-me de volta, mudo como Deus e então chorei por nós, mulher à direita na foto, mulher à esquerda na foto; por nós, homem em todos os nossos sentidos. Com a voz de volta, pus-me a gritar, a gritar, a gritar pelo sangue jorrando de três eternidades sem explicação, sem portas de saída.

A quem cabe a eternidade deste e neste homem?

Com a mão sobre o teu ombro, mulher à direita, com o olho no olho do homem que neste momento olha a nossa foto assim juntas, pronuncio em silêncio a pergunta terrível.

Nestas fotos de há tão poucos dias estamos já embalsamados, todos, como reis e rainhas do Egito; no entanto, as pessoas no mundo que abrirem tal arquivo, tecerão cada uma sua própria versão particular a nosso respeito, multiplicidade de histórias, algumas sem vasos comunicantes.

Os poemas, oceanos infinitos que nos naufragaram, não impedem que nas fotos pareçamos tão intactos, tão nítidos.

Os livros que nos espelham por todos os lados, não nos refletem. Os garçons circulam com as bandejas. Tomamos vinho branco, refrigerantes, comemos petiscos, como em todos os lançamentos de livros. Belo como um Deus antigo, autografas tua alma. Lá fora, a rua não sabe de nada, de nada suspeita, jamais nenhum de nós poderá tomá-la como testemunha.

Reconheço nas fotos meus grandes seios, que abrigaram os teus segredos mais fundos.

Meu eterno menino: As palavras, os silêncios, os sentidos, nunca nos deixam impunes. A Poesia nos cobra seu preço, a cada um de modo diverso e incomunicável, por isso esta solidão de todos os Infernos e, o mais terrível de tudo: não se poder contar o próprio Segredo sequer a si mesmo.

Por isso me olho nas fotos e não me reconheço. Por isso me pareço com tua filha mais velha, e me pareço com a mulher à direita, e me pareço com a mulher que porta teu sobrenome, e me pareço contigo, e me pareço com todos os que estão nas fotos. Só não me pareço comigo, que também estou nas fotos.

Não existo, embora me leve a sério; pelo menos continuo tentando me levar a sério, coisa simultaneamente muito fácil e a mais difícil de todas as coisas.

Estou a nos olhar em um álbum já de outro século. Não sei se do futuro ou do passado, eis-me a olhar-nos nestas fotos. O tempo não existe e todos já morremos ou, quem sabe, só eu tenha efetivamente morrido. O dantesco é que, do outro lado, do lado de fora das fotos, permaneço duvidando de tudo: da vida, da morte, dos sentidos, da livraria, dos livros, das imagens nas fotos e fora das fotos. Sei que não me deveria espantar a persistência onipotente da dúvida. Não me deveria espantar a eterna presença desta Deusa, a única plausível. De todo modo, quedo-me em uma brecha: seja de que lado esteja, sei-me a morta-viva ou a viva morta, como prefira a linguagem. Por isso, isento a todos e a ti também, amor, te isento de toda culpa, de qualquer responsabilidade pelas letras dos meus fados, dos meus tangos, dos meus chorinhos, com suas melodias de desatinos, textos-desatino que em momento algum explicitam o teu nome nem o nome do outro, do homem estrangeiro, adversário e rival, homem que não aparece em nenhuma das fotos do presente álbum, homem que te roubou, provisoriamente (em definitivo, segundo o que sentes) o Paraíso, ao roubar-te a rainha do teu reino, homem-autor, contigo, comigo, conosco, em razão desses nossos incompreensíveis destinos, dos Infernos que, há tanto, há um tempo incomensurável, no sangue me pulsam e nos pulsam, em nós todos.

Em 07 de setembro de 2010.

Republicação, com algumas alterações, na manhã de 26 de junho de 2011.