Meu Pedacinho
Eu cresci em uma pequena vila, do interior paulista. Aquele típico povoado, com uma igrejinha no meio e um monte de casas em volta. Na parte mais baixa corria um riacho, no qual a gente bricanva de fazer açudinho.
Todo dia de tarde rolava um futebol com a molecada, sem caminha contra os com camisa, que sempre acabava em briga no final. Acho que eu era um dos mais briguentos, tinha até o apelido de "Galo de Briga".
Aprontávamos muito. Seu José, dono do mercadinho vivia nos perseguindo. Não era por menos. Pegávamos frutas sem pagar e saíamos correndo. E a dona Mara? Ela vivia fazendo bolo de fubá pra vender na feira. O cheiro parecia percorrer quilômetros, mas ela não dava nem um pedacinho sequer.
Era a minha melhor fase. A fase da inocência, a infância verdadeira. Mas de tudo isso o que mais me recorda é o meu cachorro, que ganhei do Lauro, meu primo mais velho.
Chico era um cachorro e tanto. Ele era único. Como não tive irmãos ele era o meu irmão de sangue. Dormia na minha cama e me acordava todos os dias. Até minha mãe tinha ciúmes dele.
Todos os dias, o Chico me levava à escola, que ficava a poucos metros de minha casa. Chico era chato às vezes. Pegava meu sapato e jogava no meio da rua, meu único sapado.
Quando alguém chegava perto de mim, Chico dava uma de valentão. Um verdadeiro herói, pouco maior que uma galinha. Não tinha raça definida. Era preto igual carvão, com umas manchinhas brancas no pelo.
Quando fiz dezessete anos, meu tio Maurício me convidou pra ir morar com ele e minha tia na capital. Era a melhor notícia que eu já tinha recebido. O problema é que o pobre Chico teria que ficar, e foi assim que aconteceu.
Minha mãe conta que quando entrei no ônibus o Chico correu atrás até perder de vista. Ficou sumido por três dias, daí voltou mancando da pata e com uma orelha ferida.
Meu pai cuidou dele e o pobrezinho viveu triste durante os anos que estive fora.
Chico não largava mais a minha cama. Parecia que, de alguma forma ele sentia meu cheiro e isso o ajudava a lidar com a saudade.
Dividia essa tristeza com meus pais, que também tinham saudades de mim. Eu também sentia uma falta danada dos três.
Um belo dia eu estava na metalúrgica trabalhando, quando recebi uma ligação do meu velho pai. "Chico morreu", ouvi dele.
Naquele momento larguei tudo e saí em direção a uma praça ali perto. Acho que nunca chorei tanto como aquele dia. Chico era tudo pra mim, era minha vida.
Ele não era um cão, era o meu irmão que não tive. Chico foi enterrado em dois lugares. Um foi no quintal dos fundos lá de casa, onde ficava a casinha dele que fiz com caixote. O outro lugar foi dentro de mim. Quando voltei pro interior levei uma geladeira nova pra minha mãe. Meu pai ainda mexia com a plantação de tomate. Estavam os dois lá, como sempre estiveram, mas o meu Chico não mais.
Também não encontrei mais a vendinha do seu José e nem o cheirinho de bolo da dona Mara. No lugar do campinho fizeram um galpão. O riacho da parte mais baixa estava todo barrento e cheio de esgoto. Demoliram nossa escola e fizeram outra, bem diferente e mais moderna.
Dos amigos de infância restou apenas o Mauro, aquele que tinha problemas mentais. Tava lá, gordo, esquecido. Os outros todos casaram e foram embora. Ah sim, minha namoradinha de infância ainda morava lá, mas estava muito diferente. Ela tinha seis filhos e nem de longe lembrava a princesinha que eu dei meu primeiro beijo atrás da igreja velha. E por falar em igreja velha, dela só restaram ruínas.
As lembranças da infância de alguma forma permanecem em nós. Os amigos, as praças, os campinhos, tudo isso passa. Meu amigo Chico talvez seja o que mais sinto falta.
O que nunca pode desaparecer é o que a vida nos ensina, o que planta dentro de nós. Apesar de tudo, não tem preço o privilégio de encontrar meus pais, velhinhos mas com o mesmo amor e carinho que tinham por mim quando criança. Pela não ter também o olhar do meu Chico, meu cachorro, meu pedacinho.