Carta de amor
Te amei por tanto tempo. A gente deveria ter uns quatro pra cinco anos de idade. Você era tão magrinha e eu vivia correndo naquela pracinha feito louco.
Na escola eu vi você comendo mirabéu e puxei o seu cabelo. Toda nervosinha gritou e jogou em mim seu copinho de groselha. Me deu tanta raiva, fiquei todo grudando até a hora de ir embora, isso sem contar as palmadas que minha mãe me deu.
Na semana seguinte vi aquele caminhão azul no seu portão e um monte de coisas saindo da sua casa. Você ia se mudar para Campinas porque seu pai tinha trocado de emprego.
Fiz que não liguei. Uma semana depois senti uma dor bem forte em meu coração. Era sua falta, acredita?
Quando fiz dezoito anos fiquei noivo da Raquel. A Raquel era tudo de bom. Bonita, inteligente e apaixonada por mim.
Um belo dia fui visitar minha avó, já doente em um hospital em Hortolândia, no interior de São Paulo.
Na sala de espera senti um perfume que já havia sentido antes. Olhei para trás e quem eu avistei? Você. Estava crescida mas eu não me confundi, aliás, não tinha como me confundir. Era você todinha, linda, perfeita.
Lembra que te chamei pelo nome e você respondeu? Demorou mas enfim lembrou-se de mim. Meu coração batia forte. Parecia estar vendo a mulher da minha vida, e realmente estava. Até esqueci por instantes que havia jurado amor à minha Raquel.
Porém algo ali não estava batendo. Havia uma aliança dourada do meu dedo direito e outra muito parecida com a minha, mas em seu dedo esquerdo. Momentos depois chegou um moço e falou com você algumas palavras.
Você me apresentou a ele como sendo um simples amigo de infância. Tudo estava muito claro. Havíamos partido de uma mesma rua, mas seguido por caminhos diferentes.
Dias depois sua imagem não saía dos meus olhos. A bela Raquel já não mexia mais comigo como antes. Deu vontade de adiar nosso casamento e foi o que fiz. Não queria acreditar, mas estava realmente apaixonado por você.
Isso tudo seria impossível de acontecer. Eu noivo, você casada, jamais ficaríamos juntos.
Entretanto, o destino me presenteou e a encontrei novamente exatas duas semanas depois, em uma biblioteca. Você, com um olhar triste me contou. Aquele dia no hospital estava acompanhando seu marido que sofria de câncer e acabou não resistindo. O moço que a acompanhava na verdade era seu cunhado, o qual velava pela recuperação do irmão. Fiquei muito triste ao te ver daquela forma, e ao mesmo tempo feliz por saber que enfim havia uma chance de ficarmos juntos.
Desejei então nunca ter conhecido Raquel. Queria imediatamente terminar com ela mas não sabia como, não tinha coragem.
Naquela mesma noite recebi um telefonema. Raquel foi atropelada e não resistiu. Novamente veio aquele sentimento de tristeza e alívio ao mesmo tempo. Sofri por perder a pequena Raquel, ainda mais daquela forma. Raquel tinha um belo coração e me amava de verdade.
Por piores que fossem as circunstâncias talvez o destino estivesse ao nosso lado.
Esperei que se passassem alguns meses, mas não perdi mais o seu contato. Te escrevia toda semana, como uma forma de te vigiar até o momento tornar-se propício.
Tomei coragem e te convidei para jantar comigo. Depois de muita conversa e troca de olhares não perdi tempo e te pedi em casamento.
Para minha felicidade você aceitou e nos casamos seis meses depois, numa capelinha aqui da capital.
Tivemos quatro filhos. A nossa mais velha hoje é uma médica renomada, enquanto nosso caçula vive dando trabalho, com aquelas coisas erradas que você sabe.
Você me fez muito feliz, minha querida. Foram trinta e sete anos de um casamento com muito amor e respeito. Acho que eu nunca disse de verdade o quanto te amo, mas você sempre soube disso. Vou colocar esta carta aqui ao lado do vasinho e depois você lê com calma. Agora preciso ir. Essa doença está me deixando a cada dia mais esquecido e a última coisa que quero é que ela apague você do meu pensamento.
Por isso vim aqui hoje, para selar nosso compromisso. Acho que não vai demorar. Logo logo a gente se vê denovo. A cada dia que passa sinto isso.
Até lá vê se me espera e guarda uma bolachinha de mirabéu pra dividir comigo. E não jogue fora aquele copinho de groselha. Vou adorar ficar pra sempre com aquela parte manchada no meu uniforme azul.