O Cravo (e meus cem anos de perdão)
Eu, que com o passar dos anos passei a não dar tanto valor às flores, acabei encantada por um cravo. Um cravo que, a princípio nem me chamava à atenção ou me despertava interesse, é agora motivo de meu desejo. Acabei por me enfeitiçar por seu perfume e ao conhecer o toque de suas pétalas fiquei feito boba olhando com admiração aquele cravo altaneiro, tão próximo e distante de mim. Eu senti, do fundo do meu coração, que queria aquele cravo para mim. Eu queria e queria somente aquele cravo, eu que tantas vezes já cultivei tantos outros cravos e até algumas rosas. Eu queria, queria e não havia meios de obtê-lo.
Neste jardim não havia mais ninguém, somente o cravo, eu e uma grade que nos impedia um toque mais profundo. Essa grade fazia sombra e me causava medo, tanto por sua imponência quanto pelo fato simbólico de estar sempre ali, impedindo que eu, tão pequena, conseguisse alcançar meu objeto de desejo. No mais não havia mais ninguém mesmo, éramos somente nós dois, algumas outras apáticas flores, o silêncio e a vontade. Até que não me segurei mais, não podia deixar que este cravo permanecesse ali, tão sozinho e infeliz, queria-o comigo. Tomei coragem, enfrentei a grade, pedindo licença para que meu pequeno corpo pudesse passar por entre suas curvas um tanto quanto enferrujadas e, se me permitem dizer, nem tão bonitas ou imponentes assim como pareciam ser de longe. Tomei cuidado para não chamar a atenção de ninguém, fui pé ante pé e a distância foi medida pelo suor frio e aquele coração já quase na boca.
Eis que estou frente a frente com ele, ele que de tão perto assim é ainda mais encantador, apesar de suas pétalas não serem tão bonitas ou seu perfume tão marcante. As pétalas são pálidas, o talo grosso e de difícil corte e, nossa, como é grande! Tanto que chega ser quase impossível apanhá-lo. Tentei mais uma vez, queria roubá-lo para mim. Por quê? Porque nunca um cravo sequer antes havia me encantado desta forma. Não era tão bonito e também não saberia muito bem onde colocá-lo, mas sentia que ele estava ali me chamando, baixinho e toda vez em que relutava com seus espinhos para eu apanhá-lo, ao me ver desistir, ele se curvava e permitia que mais uma vez eu me deleitasse com seu aroma e toque de suas pétalas. O cravo não sabia, mas ele queria ser arrancado dali. Quando eu não ia visitá-lo ou se passava indiferente diante de sua presença, eu sentia sua tristeza refletida em sua palidez e quando retornava me esquivando daquela grade que amaldiçoei por tantas vezes (peço perdão por tal ato, mas é inevitável), se ele estava bravo, me feria com seus espinhos e o sangue escorria por meus dedos, manchando minha mão e tornando rubras as pétalas tão branquinhas. Eu chupava todo o sangue de meus dedos e limpava uma a uma, levemente cada pétala tornando-as branca novamente.
Eu reguei tanto aquele jardim, tirei as folhas secas, cuidei das flores vizinhas, tão companheiras de meu cravo. Tomei cuidado para que pudesse, nem que por alguns instantes e sob olhares invejosos, fazer parte também daquele jardim. Outros cravos apareceram, algumas rosas, mas nenhum deles conseguia tomar o lugar daquele cravo que eu queria. Não sei por que tanto desejo, tanto querer, mas quem sabe? Quem consegue entender? Eu o queria comigo, mas não podia arrancá-lo daquele jardim e muito menos daquela imensa e nem tão bonita grade. Ela sempre estará lá impedindo que o cravo vá para outro jardim ou algum vaso bonito por aí.
Eu ainda vou todos os dias cuidar de meu cravo e não o forço a se curvar para que eu lhe arranque do jardim, o processo tem que ser lento, a grade está ali e enquanto não conseguirmos arrancar aquele cadeado ela permanecerá. Eu sei que tenho que ter paciência e sei que tenho que ter cuidado. Um cravo não é como rosas, que uma amiga me falou que eu deveria cultivá-las, pois seria muito mais feliz, um cravo é um cravo. É solitário, imponente, tão imperceptível com sua palidez entre as cores tão felizes de um jardim. Esse cravo é mais um cravo dentre tantos outros, porém é por ele que estou encantada. Se não puder tê-lo comigo e for obrigada a deixá-lo naquele jardim, tão distante entre todas aquelas outras flores, assim terei que fazer, não cabe só a mim o esforço e a decisão. Um cravo tem que deixar ser apanhado e se isso ele não quiser o deixarei em paz em seu jardim. Admirarei por algum tempo ainda suas pétalas, aroma, frescor e sei que também será difícil quando nossos caminhos se cruzarem.
Ainda tentarei, nessas tardes de outono, ver este cravo tão solitário e cuidarei para que as marias-sem-vergonhas nem sequer cheguem perto. Cuidarei para que as comigo ninguém pode não lhe causem medo e que as rosas não tragam discórdia. Protegerei da chuva, frio e vento. Cuidarei para que o sol não lhe faça mal e nem que bichos venham devorar-lhe as folhas. Eu cuidarei de você, cravo.