Sem título (ainda)
O ano? Não importa. Era o de 1875. Grandes tempos, que não mais voltam. A história? Sim, a história. Irei lhe contar nos mínimos detalhes - desde que os lembre. Não é muito interessante, nem possui aventuras extraordinárias. Fatos simples, mas complexos. Prefiro que tire sua própria conclusão.
Ele estava sentado em sua poltrona. Apoiava a cabeça na mão, e esta era apoiada pela mesa. Olhava o nada; não olhava, não conseguia, estava preso em pensamentos. O que pensava? Na vida, como poderia segui-la. Mergulhava em sujas lembranças, lutava para não voltar, mas voltava. Recobrava a consciência, mas logo se perdia. De temos em tempos levava um copo à boca – o que havia dentro não sabia.
Após algum tempo abriu uma das gavetas. Tirou um papel devidamente dobrado. Era uma carta. Não a abriu. Apenas segurou esta com uma das mãos. Acariciava a folha, como se fizesse em alguém que amasse. Essa era a intenção, sentir a quem se ama, mesmo que já não estivesse mais aqui. Continuo assim por vários minutos, inconscientemente a maioria do tempo. Então apertou fortemente a tal carta, ao mesmo tempo em que tentava segurar as lágrimas. Não apertava esta por raiva, mas por saudade.
O que o afligia o leitor deve desconfiar. Foi o amor. Não apenas o amor, mas este aliado à morte. Combinação perigosa. Nem culpa de uma, nem da outra; mas das duas. Pior que morrer era morrer pela metade.
Tentava não pensar nisso, queria lembrar os bons momentos. As lembranças apenas consumiam-lhe. Nunca mais viveria aquilo, tudo havia passado; desta vez para sempre. Como poderia seguir sem ela, sem um corpo amigo ao lado. Era isso que o esperava.
Essa parte irei contar-lhe brevemente, para não cansar a leitura.
Como ele a conheceu não se sabe. Não era da cidade, tão pouco das cidades vizinhas. Era bela? Sim! Sim! Muito bela; uma beleza diferente, única; encantadora. O que tinha em beleza tinha em timidez. Não havia muitos amigos. Era muito educada, sempre cumprimentava todos os vizinhos. E alguns destes comentavam-lhe pelas costas, criava rumores acerca de sua origem – estes não merecem serem lembrados aqui. Poderia descrevê-la em um livro; contento-me a estas poucas linhas. O casal convivia bem. Nunca se ouviu uma briga. Acho que se amavam – algo raro, amar e ser amado. Casaram-se jovens. Uma bela festa. Parou a cidade – também o tamanho que esta era. Ele era um homem de posses, herdara tudo dos pais. Administrava bem aquilo que lhe cabia. Estudou na capital.
Vamos ao que interessa. O tal episódio trágico. Ocorreu também naquele mesmo ano. Foi no rio que corta o quintal da antiga casa. Alguns dizem que ela foi possuída por espíritos, outras que estava louca; prefiro pensar que ela mesma quis aquilo. Enfim, foi assim.
Era madrugada. Não havia luz, apenas alguns feixes adentravam a casa. Estes provenientes dos raios que caíam lá fora. De tempos em tempos via-se a cama. Ele estava ali, deitado. Logo acordou. Abriu os olhos e nada viu. Um estranho sentimento tomou-lhe conta. Parecia estar preso no nada, imerso na escuridão. Debateu-se na esperança de encontrar alguma fonte de luz. Poucos instantes, mas cruéis. Logo outro feixe iluminou o quarto. Respirou fundo, estava a salvo. Apenas o coração não havia se recuperado do susto. Preocupação à toa, pensou ele. Apoiou-se com os braços no chão, havia caído da cama, e levantou-se. O quarto continuava escuro. Mas agora sabia onde estava. Conhecia aquele ambiente, poderia andar com os olhos fechados - nesta ocasião não era preciso. Como não percebeu onde estava, questionou-se. Lembrou-se do sonho. Hesitou um instante. Foi em direção a cama, queria ter certeza que estava tudo bem. Estendeu a mão esquerda, deu alguns passos até encontrar o móvel. Foi tateando a mesma em busca de algo, percebeu que o que procurava não estava ali. Novamente foi tomado por aquele sentimento estranho, inexplicável; uma mistura de angústia, medo e outros sentimentos; não sei explicar ao certo. Chamou seu nome; não houve resposta. Pude ver o rosto dele, por alguns instantes, parecia-me que esperava pelo pior; como se soubesse, no fundo, o que havia acontecido, mas não quisesse acreditar naquilo.
Pensou por alguns segundos. Logo voltou à realidade. Saltou da cama. Encaminhou-se à sala, passando por um estreito e longo corredor. Ofegante, olhou pela janela principal. Esta dava para o fundo da propriedade. Onde passava um rio, misterioso e de águas escuras; não tinha nome. Viu. Correu até a porta dos fundos, ficava bem ao lado da janela. Passou pelo gramado, estava encharcado – tanto o gramado quanto o homem. Desceu uma escada do jardim. Chegou ao pequeno cais. Ela estava lá, alguns metros adiante, na ponta. Percebeu a chegada dele, apesar de tanto barulho. Virou-se. Olhou. Um olhar que nunca poderia me esquecer, nem que vivesse mil vidas após essa. Foi o último. Nunca vi despedida tão doce e bela, mas tão devastadora. Ele ficou imóvel. Aquele olhar o penetrou. Trouxe seus medos e angústias à tona. Uma lágrima caiu do rosto dela – poderia ser os pingos da chuva. Voltou-se para o rio. Fitou este por alguns raros segundos. Pulou. Em direção ao desconhecido e inevitável. A escuridão a tragou. Envolveu e afagou a jovem moça. Dizem que quando se morre lembra-se da vida. Neste caso não foi isso que lembrou. Não lembrou nada. Pensou no que poderia ter sido. No que pensariam sobre ela. Se alguém choraria por sua morte. Logo os pensamentos foram desaparecendo. Recostou-se no fundo do rio. Este a protegeria de tudo. Do mundo exterior, das pessoas. Guardar-lhe-ia o corpo. Conservá-lo-ia para a eternidade. Finalmente apagou-se tudo. Repousou.
E ele? No ímpeto correu até a beira do cais. Cogitou mergulhar, ir atrás dela. Fitou o rio por algum tempo. Mas a razão falou-lhe mais alto; ou o medo. A verdade é que não teve coragem. Ficou apenas olhando. Esperando que ela surgisse triunfante da escuridão. Esperou à toa. Gritou o nome daquela – como se ela pudesse ouvir. Logo chegaram empregados deste. Junto destes ele tomou coragem e foi atrás dela. Entrou em um pequeno barco. O candeeiro que um dos empregados levava iluminava o caminho. Não a acharam. Nem viva nem morta. E mesmo que se achasse seria apenas um corpo sem vida. O rio cumpriu seu papel de protegê-la. Por esse fato de nunca acharem o corpo, atribuíram ao caso ares sobrenaturais. Passaram os dias até o presente momento.
Quando se ouviu um barulho. Ninguém dera atenção. Nunca a tinha em vida, não seria em morte que lhe dariam. Não agüentou a culpa de não ter ido atrás dela. Foi covarde. Mas queria provar a ela que não era um medroso. A melhor forma, segundo ele, seria encarar a morte. Foi isso que fez. Deixou apenas um bilhete:
“Foi-nos a alegria, a pouca que existia, restou-nos a tristeza, a solidão; isso não se pode chamar vida, tão pouco morte. Estamos vagando sem rumo, sem estado. A morte em um desfalece o outro; e a vida neste ressuscita aquele. Fomo condenado à infelicidade. E assim permanecerá até que a morte nos uma em vida”
Resta uma dúvida ao caro leitor. Por que acho que ela quis aquilo? A resposta é simples, vamos a ela. Os dois se amavam e se completavam. Isso é certo. Eram iguais em tudo, inclusive na tristeza. Este era o problema. Era muita dor para dois seres compartilharem. No meu ver, este foi o motivo. Nem o amor, por maior que fosse, conseguiria tirar-lhes desse estado. E ela viu, inutilmente, na morte a saída. O amor não é tão belo e nobre quanto dizem.