Café da Manhã
Ao som de Fernanda Takai
Para Ana Carolina Santos
Eu a via quase todos os dias, durante o inverno, sempre com o mesmo semblante, sentada no hall do prédio, toda agasalhada. Invariavelmente ela tinha consigo uma xícara de chá e um livro, sempre o mesmo, de capa dura e desgastada em vermelho, com o título (que nunca decifrei) quase todo esmaecido, com resquícios de tinta dourada.
Eu apanhava minha Folha de São Paulo com o porteiro, pegava uma xícara de café e me sentava de frente para ela. Polidamente eu dizia bom dia, ao qual ela respondia com um breve aceno de cabeça e corando demasiadamente nas pálidas faces. Então começava a ler meu jornal e me esquecia dela ali. Quase sempre ela saía sem que eu visse, e me deparava sozinho no hall, diante de uma xícara vazia. Talvez fosse minha culpa, ser tão distraído, mas ela saía sem fazer ruído algum, deve-se dizer. Às vezes eu acabava meu café e ela ainda estava ali, na mesma posição, com o mesmo semblante quase triste, olhando menos para o livro que para o nada… Era sempre assim, por isso eu nunca a tinha visto em pé no balcão da cafeteria, no elevador, na banca de jornal, no saguão, ou em qualquer outro lugar.
A julgar pela aparência da moça, de aproximadamente 25 anos, de pele claríssima, cabelos negros, magra, vestida sempre de forma elegante, dir-se-ia ser uma estudante de Direito, talvez no 3º ano de curso. Seu nome, apartamento, estado civil, sempre desconheci e me continha ao máximo no desejo de indagar ao porteiro, ou fuçar suas correspondências. Apesar de ser uma incógnita, eu já me habituara a ter sua companhia para o café da manhã, todos os dias. Mesmo sem trocarmos palavra alguma, a presença dela me acalentava, de alguma forma, só de saber que ela estava ali, sentir seu perfume, ouvi-la trocando a página de seu eterno livro hora ou outra. Era muito óbvio que conversaríamos, algum dia. Só precisava ter paciência e esperar que a vida, numa guinada inesperada, tão típica dela mesma, resolvesse tudo com uma só coincidência.
*
Ele chegava lá, sempre por volta das 7h30. Passava por detrás da minha poltrona, dirigia-se ao porteiro, dizia um bom-dia sorridente, aqueles dentes sempre muito brancos, comentava o futebol, ia até a cafeteria, pedia um café expresso, rasgava cinco saquinhos de açúcar, adoçava bem, dizia um obrigado satisfeito e bem-educado, como a mãe certamente lhe ensinara. Isso tudo eu sabia sem ver. Jamais me virei em minha poltrona, ou o segui com os olhos. Apenas ouvindo os mesmos sons, durante o inverno inteiro, eu já tinha decorado seus movimentos. Sempre o mesmo, sempre tão igual, sempre tão previsível. Tão previsível que me dava um pouco de enjôo, às vezes. Em outras, inveja. Seria mesmo tão bom assim manter uma rotina saudável e sociável?
Passava, então, ao meu lado em direção à poltrona em frente. Não sei se ele se sentava ali mesmo antes de eu chegar, mas me fazia bem pro ego pensar que ele apreciava a minha companhia. Apesar de que, no fundo, sei que não era assim. Eu nem respondia ao seu bom-dia tão bonito. O máximo que conseguia era corar muito, inconscientemente, até. Tentava me ater ao livro, tão velho e bom companheiro de tantos outros hotéis e cidades... Inutilmente. Me atraía tão mais a atenção a presença daquele homem, sem dúvida mais velho que eu, por volta dos 30 anos, sempre bem arrumado, polido, de cabelos bem penteados, com uma roupa ao mesmo tempo moderna e tão alinhada. Me fascinava aquele mistério que era ele. Por que nunca dizia nada além de bom-dia? Não sou atraente aos seus olhos? Mulher não tinha, pelo menos não usava aliança. E eu só o encontrava ali, sempre naquele horário, apesar de ficar rondando pelo hotel o dia todo, às vezes até altas horas.
‘Ora qual!’ – eu pensava – ‘Ele já passou da fase de paquerar, um homem nessa idade deseja algo mais sério, é óbvio. E eu lá sirvo pra coisa séria?’ E nesses pensamentos me enchia de tristeza.
*
Um dia desci atrasado para o trabalho. Uns três shots além da minha capacidade na noite anterior e pronto: já me desnorteava por inteiro. Passei pelo saguão quase correndo e nem parei para o café habitual no hall. Inconscientemente olhei para a poltrona da moça e verifiquei que ela estava lá, como de costume. Senti um vazio enorme, só de saber que não apreciaria um bom café ao seu lado, como todos os dias. Talvez soe um tanto incomum eu apenas mencionar a falta que me faria um café ao seu lado, mas eu sou assim. Que não a achasse atraente não poderia dizer; achava sim, e muito. Mas eu sempre valorizei mais as coisas que duram muito tempo, mesmo que durem pouco. A beleza dela, assim como a minha, sua pele branca, tudo isso desapareceria um dia, é fato; mas por mais que as pessoas envelheçam por fora, ela e eu seríamos para sempre os mesmo que tomavam café juntos, todas as manhãs, naquele inverno de 2010.
- Bom dia, doutor – era o porteiro.
- Xii, Zé, hoje não dá, eu to muito atrasado!
- Pode deixar que eu coloco o jornal junto com a correspondência do senhor, viu?
- Obrigado mesmo, Zé. Até mais.
- ‘té, doutor.
Zé. Eu nunca perguntei o nome de verdade. Nem ele o meu. Era esse o diálogo de todas as manhãs. ‘Bom dia, Zé’, ‘Bom dia, doutor’, ‘e o Tricolor, hein’, ‘opa, doutor’, e assim ia. Tinha um carinho pelo Zé, como se tem por um tio. Eu o considerava meu amigo, até. Mas hoje não estava pra ninguém. Deixei o prédio na Av. Paulista, atrasadíssimo, ainda arrumando o nó da minha gravata, quando percebi que esquecera minha pasta. ‘Merda’, pensei.
Sem pestanejar, dei meia volta na rua e corri de volta para o prédio, com um ar meio de maluco, deixando as pessoas um tanto perplexas me observando.
Passei de novo pelo Zé, que felizmente estava de costas para o balcão, e corri para alcançar o elevador, que estava quase fechando. Entrei ainda atordoado, arrumando as dobras na roupa, quando fui indagado por uma voz feminina:
- Qual o andar?
- Vigésimo, por favor.
- Não tomou café hoje?
Cortei minha respiração ofegante. Quando levantei os olhos, lá estava ela. Minha companheira de todas as manhãs. A figura tão misteriosa que se sentava diante de mim e me encantava com seu ar tão contemplativo e seu livro vermelho em mãos, que trazia ainda agora.
- Não, hã... Hoje me atrasei um pouco. Muito – e ri. Ela riu comigo. Era tão bonito seu sorriso. Parecia tão ingênuo, o que era de se estranhar, porque os olhos dela não passavam essa inocência...
- É uma pena. Eu gosto da tua companhia. – ela disse e corou. Só nessa segunda frase eu vim perceber que seu sotaque não era de São Paulo. Vinha do interior, e trazia consigo a nostalgia dos invernos rigorosos, frente à fogueira, rodas de violão, histórias de amor, talvez.
- Engraçado, eu também estranho quando você não está lá, apesar de nunca nos falarmos. – respondi, contendo-me para não gaguejar ou não deixar transparecer a ternura real daquelas palavras. Ela não respondeu mais, só corou muito.
E o que se seguiu, então, foi aquele silêncio constrangedor de elevador, olhando para as luzes do display mudando, desamarrotando a roupa, ajeitando os cabelos. O marcador de andares estava mudando do 10º pro 11º quando as luzes piscaram. E do 11º pro 12º quando o elevador parou, as luzes apagaram e a garota, de súbito, se agarrou ao meu braço com força. Ainda bem que estava tudo escuro, porque senti meu rosto corar violentamente naquele instante. Senti o cheiro dos cabelos negros, tão de perto, um misto de frutas vermelhas e amadeirado, não sei. Quase que inconscientemente abracei-a pelos ombros e sussurrei ‘vai ficar tudo bem, querida’. Ela se apertou ainda mais contra mim e, num piscar de olhos, virou-se e se atirou ao meu pescoço. Agora eu sentia aquela pele fria e macia do rosto dela contra o meu pescoço quente, devido à corrida de volta ao prédio. Não sei por quanto tempo ficamos assim, mas tenho a impressão de que não foi por tanto tempo assim, apesar de parecer que foram horas a fio.
*
Naquela manhã ele passou correndo pelo hall. Era estranho vê-lo assim, apressado. Fiquei esperando ele sentar, mas não sentou. Discretamente eu me virei e percebi que ele já havia saído. ‘É, nada de tomar café com ele hoje’, pensei. ‘Infelizmente’. Não tinha por quê ficar ali, esperando, já que ele não se sentaria comigo. Só para não dar muito na cara, esperei uns minutos antes de me retirar.
Fui para o elevador, apertei o 15º, pensando no que fazer quando chegasse ao apartamento. Talvez ligasse pra minha mãe, ela sente tanto a minha falta. Talvez escrevesse, ou simplesmente me pusesse à janela, observar aquelas pessoas tão diferentes das que eu vi a vida toda. Estranho como, mesmo sendo compatriotas, somos tão diferentes. Não só no modo de falar ou vestir, mas no jeito de sentir e de ver a vida... Quantas vezes passei a tarde toda observando aquela gente que não era a minha, sentindo aquela saudade gostosa de casa. Pensar tudo isso foi mais rápido do que narrar, de fato, e quando olhei pela porta, ele voltava, um pouco descabelado, aturdido, procurando as chaves no bolso. Não pareceu me ver ali. Perguntei para qual andar ia, ele respondeu, ainda sem olhar pra mim, preocupado com as chaves, o nó da gravata. Então senti um impulso forte de conversar com ele, percebi que aquela era a chance de conectar nossas vidas, finalmente. Arrisquei uma pergunta relacionada ao cotidiano e, só então, ele pareceu se dar conta de quem falava com ele.
Olhou-me nos olhos e respondeu, de um jeito tão doce. Eram olhos tão doces... Eu ri da resposta, dos olhos, ri de felicidade, mas não percebi na hora. Arrisquei um outro comentário que me fez corar muito e acho que ele percebeu. ‘Idiota’, pensei, ‘não devia ter falado isso!’. Pra minha surpresa ele respondeu dizendo que gostava da minha companhia e sentia minha falta quando eu não tomava café com ele. Não soube mais o que dizer. Meu coração estava batendo diferente, não sei bem. Fingi estar arrumando minha blusa, ele começou a se pentear. De repente as luzes piscaram, depois apagaram e o elevador parou. No susto, pulei no braço dele e me apertei com força.
Senti o cheiro dele de perto, pela primeira vez. Cheiro de barba feita, canela e um resquício de álcool. Ele me abraçou pelos ombros e sussurrou ‘vai ficar tudo bem, querida’. Meu coração disparou. Nunca alguém havia falado comigo daquele jeito, ainda mais um estranho. Num outro impulso, me atirei ao pescoço dele, senti a pele quente. Meu coração batia acelerado, parecia, cada vez mais. Ele me abraçou forte, acariciando as minhas costas, meus braços. Nos beijamos, ainda no escuro. Não sei quanto tempo ficamos ali, mas foi tempo suficiente. O elevador era pequeno, suávamos tanto, o que era estranho, pelo frio que fazia.
As luzes se acenderam. Nos arrumamos rapidamente e continuamos abraçados ainda, durante muito tempo.
*
Ela se apegava a mim de uma forma tão intensa, enquanto nos beijávamos. Seria hipocrisia se eu colocasse a culpa na ressaca, ou no porre do dia anterior. Eu nunca pensei que fosse capaz de algo assim. Muito menos pensei que ela, aquela garota com sotaque do interior, jeitinho de tímida e inocente, pudesse... Mas foi tão lindo. Ao mesmo tempo em que estranho. Não consigo decifrar o que senti, ainda hoje. Mas meu coração bate gostoso e diferente quando lembro daquele dia.
O elevador voltou a funcionar, nos arrumamos e ela desceu no décimo quinto andar. Segurei a porta e perguntei por seu nome. Ela sorriu, piscou pra mim, e entrou no apartamento. Entrei no apartamento 205, peguei minha pasta e desci novamente. No outro dia desci ansioso para o hall, na esperança de encontrar a garota e saber mais sobre ela, sobre sua rotina, sua cidade, manias, vícios. Queria ser alguém pra ela, participar do dia-a-dia, me inserir em sua vida. Mas ela não apareceu naquela manhã. Nem na outra. Nem em nenhuma outra manhã de inverno daquele 2010.
Um dia o Zé me parou.
- Ô, doutor. Tem correspondência pro senhor.
- Manda aí, Zé.
- Tá’qui, doutor – ele disse, entregando-me um postal.
- Valeu, Zé. Até mais tarde.
- ‘Té, doutor.
Sai, admirando o postal, que vinha não de muito longe, se parar pra pensar, e mostrava uma estação antiga de uma cidade, outrora, pequena; agora cheia de luzes e carros passando, parecida com a Estação da Luz, que resistiu ao tempo. No verso, apenas as palavras: “Saudades dos cafés da manhã ao teu lado.”. No canto, as iniciais A.C. Sorri, nostálgico, guardei o postal no terno e segui para o trabalho.
*
É, eu sei que não devia ter deixado o hotel assim, sem nem dizer meu nome. Mas eu sou assim. Depois daquele tempo no elevador, quando dei por mim, estava escrevendo sobre ele, sobre querer estar sempre com ele. Eu me peguei querendo uma rotina, um dia-a-dia sempre igual, uma vida séria de verdade, e isso não é pra mim. Fiz as malas naquele mesmo dia, e parti. Queria deixar tudo o que havia escrito, até então, mas não sabia o apartamento dele e não queria deixar com o porteiro. Não tinha um envelope, nem selo, nada que transmitisse a segurança do sigilo. Parti.
Mas nunca me esqueci dele, de fato. Um tempo depois resolvi mandar uma carta. Mas seriam muitas palavras pra alguém com quem nunca conversei de verdade. Decidi enviar um postal da antiga estação. Poucas palavras, muito significado, eu sou assim. Recebi uma resposta, igualmente simples: venha me visitar. Eu vou, um dia. Não demora muito, eu sei, e a vida dá uma guinada daquelas que ela sempre dá, eu esqueço esse meu medo da vida e vou viver, feliz, muitos cafés da manhã, durante muitos anos, ainda.
William G. Sampaio [20/06/2011]