Rio caudaloso
Havia dias assim, sem nada pra gente fazer. Nada importante. Não tinha importância. Nenhuma. Acordar, comer. Sonhar não. Só dormir tipo pedra de tão cansado, qualquer barulho é susto. Só isso. Acordar de manha. A casa ainda escuro. Um frio matando a pele da gente.
O café bem pouquinho, quase sem açúcar. Da vontade de comer um pão, mas não tem. Só amanhã que vamos comprar. Minha vó vai ganhar dinheiro com as roupas e vai trazer pão e bolacha. Estou esperando. Daqui a pouco vamos pro rio. Minha vó vai lavar roupa. O sol é grande lá. O rio preto leva bem devagarinho os garranchos que desce na correnteza. Da vontade de ir junto deles. Mas tem coisas a fazer. Fico pescando a manhã, pouca piaba morde a isca e minha vo canta que uma coisa. Feliz com as mãos na roupa suja. Canta musicas velhas que ninguém mais quer ouvir. Mas ainda fica feliz. Eu canto também, mas do meu jeito. Sem deixar ninguém ouvir. Com minha vara olhando o rio e vendo s sol cada vez esquentar mais. Dá uma fome mais tarde. Se ela deixasse assaria um peixinho desses. Dá uma pena deles, tão pequeno e morre pra encher nossa barriga. Mas acho que tudo é assim mesmo. Uma coisa vai se indo pra outras chegarem.
Essa rotina era assim, quase todo dia, eu e ela indo ao rio. Com fome e com sede não. No rio tinha muita água. Mas só lá pra cima. Aqui em embaixo muito esgoto. A gente sobe na virada das taboas e pega com um potinho de barro, água geladinha que não pegou ainda o sol. As taboas esfria tudo embaixo delas. Peixinhos ficam misturado no capim, corre rapidinho. Jeito criança brincando, a gente bate a mão na água. Espirra tudo pra cima. Os bichinhos saem correndo feito gente com medo. Desco devagar. Água na perna e afundando até a cintura. Molhando tudo até o saco. O shorte amarelo fica enxarcado. Ganhei de minha mãe. Ela fez vários. Tudo amarelo, um pra cada irmão. Era estranho todos na rua da mesma cor. Dava vergonha. Só no rio. Longe desse jeito igual que eu me sentia bem.
Minha vo com a cabeça enfiada na bacia falava sem barulho, com os lábios. Não da pra saber o que existe ali, beiço com beiço o dia todo. Espuma espirrando pra todo lado. Shlat , shlat, shat. Bolinhas pra cima. Estourando. Roupa no quarador, saindo fumaça molhada. De vez em quando uma cusparada. Levanta olha toda aquela roupa ainda pra lavar. Mão na cintura. Respira tão fundo. Falta tanto ainda e a vida tão difícil. Acho que era isso que pensava. Falta tanto ainda. Eu brinco de pedrinha pulando na água. Jogo varias. Bate na água, desliza e pula de novo, as vezes três saltos. Fico feliz demais quando elas pulam. O capim voa o tempo todo, o solão quente e o vento fresco varrendo tudo, empurando tudo que é seco pra longe. Parece chuva de capim seco. Da uma coisa. Uma vontade de ir junto com eles. Mas a gente é pesado. Só se um vento fosse muito forte e arrancasse do chão toda gente.
Julinho também estava lá, ia pouco, raivoso. Não gostava do rio. Por isso ia pouco. Fazia birra e ficava. Quando ia quetava no canto, como um pé de pau. Não fazia nada. Sentado, o tempo todo sentado. De birra. Eu não ligava não. Ficava com o rio e com o vento, amando a terra e os peixinhos que fugia. Pirraçava ele, jogava água na cabeça, brigava, levava a sério. Vinha dele raiva de verdade. Deixava a gente triste. Sentava na beira do rio e pegava água com folha de abacate e caia tudo pelos furinhos. Fivava assim, levantava a água so até ela rolar pelos cantos da folha. Sabia cair sem pensar. Julinho de birra não pegava água. O vento batia nele também. Os cabelos voava sá por lado so, correndo do vento. Ele não gostava. Virava de lado. E vento empurrava Julinho. O rio passava como se nada fosse mais importante do sua passagem. O fundo negro é negro o dia todo, até com sol, ate com a tarde dourada.
Quase na hora de ir embora. Fome come a gente por dentro. Eu e julinho. Minha vó forte continua falando com ninguém. Da medo. Acho engraçado. Mais triste que engraçado. Ajudo recolher a roupa, ainda molhada. Vai ser dificil levar de volta, minha vó aguenta tudo na cabeça dela e não reclama. Nela o rio não anda. Não tem vento, não tem nada que muda. Parece Julinho. Nela só a roupa fica limpa e mais nada. Só a roupa muda.
O dia ficava escuro como o fundo do rio. A gente dava de ir embora. Não mais sol, a noite já espreitava tudo longe de longe . Estrelinhas nasciam pequeninas e feliz . Os três andava, cada uma com seu mundo. Via muitos coisas naqueles dias, com exceção do fundo do rio.