HOMEM OBJETO, DIÁRIO DE UM SUBURBANO

Eu estava compenetradíssimo. Encorujado num canto, bailava há certo tempo com a tal valsa que dos trens se desprendem, aquela melodia monocórdia e monótona que nos convida a ser par de dança sob os chacoalhos dos trilhos, ruídos em compasso ternário. Embalo que, via de regra, coloca-me num estado de estupor, assim como uma criança de colo que se entrega ao sono quando a mãe cantarola um “nana nenê”.

Embora o conhecido aperto dos assentos dos trens suburbanos, eu me julgava muito confortável com o queixo quase colado ao esterno, com a cabeça direcionada para um livro firmemente preso dentre os dedos (as mãos firmes de puro receio, pois já tive a experiência de uma vez um livro voar ao longe direto para a testa de um pobre senhor que cochilava ao lado quando de um solavanco descontrolado do vagão).

Foi aí. Nessa resoluta e amorfa rotina diária. Foi aí que a coisa toda aconteceu. À parada regular de mais uma das tantas e quantas estações. É como eu já visualizasse a sua presença iluminada a romper a abertura da porta eletrônica. Emoções programadas com antecedência, de uma forma tão estranha... E eu, como um daqueles enormes tigres a pressentir no ar a aproximação da presa, munido de uma deslavada naturalidade, despreguei calmamente os olhos das páginas do livro para, vagarosa e meticulosamente, suspender com classe cabeça e olhos (primeiro para não me assustar com o que certamente veria, depois, para não alarmar e espantar a própria visão). Era batata: Ela estava lá. Ela...

A primeira coisa que captei foi o pé calçado de um sapato de salto muito alto, enlaçado numa cor pink, com aqueles dedinhos redondinhos e perfeitos de unhas pintadas de branco com uns minúsculos desenhinhos de flores no meio - tão em moda por essas paragens... - Na seqüência, a canela absurdamente bem torneada e imaginada por debaixo da calça jeans desbotada. Em seguida eram coxas... Ah, que coxas... Eram daquele tipo que todo sacana que se preza sonha em ter abertas na sua cama e suspira ao folhear as revistas masculinas. À medida que a vista avançava - e como era de se prever magicamente desde que comecei a observar os pés - cintura e umbiguinho estavam todos de fora. Porque uma mulher daquela tem plena consciência do material que tem à disposição e não se permitiria cobri-los por qualquer falso pudor... De cada lado da calça (de cintura um tanto baixa), pulavam aqueles espetaculares ossos frontais da bacia, muito espetados, realçando ainda mais o contraste da retidão do abdômen queimado. Na lateral do ventre, em direção ao dorso, ornava uma tatuagem muito colorida e divertida de uma fadinha sentada, risonha, sobre uma meia-lua. “Ah, que menina lúdica essa”, já precipitavam as frases de apoio em meu pensamento enfeitiçado...

E foi justo nesse ponto que eu titubeei. Foi até um tanto triste todo aquele medo. Porque parei e me perguntei: "opa, opa... para que continuar a olhar isso, meu irmão? Pra que sofrer desse jeito com essa visão?" Ah, mas isso durou apenas uma fração de segundo. A raça “homem” não costuma ser muito filosófica nesses claros momentos onde a biologia é a matéria a ser estudada e não a dialética. E foi assim que a curiosidade ganhou longe do sofrimento psicológico... E foram-se os olhos, como uma boa câmera de filmagem nos estúdios de uma pornô-chanchada, com o registro do seu honorífico trabalho.

Então vieram, pela ordem: aquela blusinha branca apertada de algodão muito decotada. As saboneteiras dos seios que eram um verdadeiro abismo dourado porque até refletiam os raios do sol e aquele pescoço... hum, bem longo e dando início aos cabelos lisos e muito negros, como os de uma delicada oriental. Mas eu sabia (sem saber) - como sabia sem saber que o umbigo estaria a descoberto - que ela também era linda de rosto... Acho que sabia até antes mesmo dela entrar no trem. Meus olhos presenciaram apenas certezas ao constatarem aquelas realçadas maçãs rosadas e queimadas, o nariz pequeno, fino e arrebitado e os olhos enormes e negros, mas tão negros... Tão negros que eu me perguntava: “Como alguém poderia ter olhos dessa negritude e tão brilhantes ao mesmo tempo? Como poderia haver tanta luz no abismo da escuridão?” E todo esse passeio pelo universo daquela mulher não durou mais do que, vai lá, uns cinco segundos...

Seria mesmo impossível ser indiferente àquela. Nem o mais apaixonado dos homens poderia ignorar a uma fêmea que representava tudo aquilo que significa ser "feminino". Não. Não haveria como. Nem tive muito a curiosidade de verificar como os outros homens reagiam àquela visão.

E não é ela se movimentava em minha direção? Aquilo mexeu tanto com meus nervos que nem notei que logo ao meu lado vagara um assento. Pois ali mesmo, colada em mim, perna roçando perna, cotovelo triscando cotovelo, ela se sentou um pouquinho atrapalhada com as duas sacolas de compras e mais a bolsa que carregava. De minha parte, só podia achar o embaraço charmoso e bonitinho. Depois, ajeitou-se soltando aquele suspiro de cansaço e, sem titubear, perguntou a mim, assim, na lata, as horas. Que impertinência da moça... assim, as horas, as horas... “Que diabos importariam as horas?” Queria falar para ela que as horas pararam junto com o meu coração quando ela pôs aqueles pézinhos lindos naquele trem e que, para mim, os trilhos corriam para o sol, ao infinito... Se bem que para não causar tumulto, limitei-me a dizer mesmo, na seca, “as horas” e falei daquele jeitinho mentiroso que apontava o meu relógio.

Constatei que a partir dali e até que ela se fosse, eu estaria mesmo é irremediavelmente perdido. Completamente. Estava tão fora de mim que nada me vinha a não ser apreciar e sentir a presença dela. Veio-me inclusive a triste certeza de que perguntar qualquer coisa à ela ou tentar o mínimo conhecê-la seria como jogar fora tudo o que eu havia me permitido interiormente, através daquela presença. E foi assim mesmo que eu fiz. Pus-me, conformado, a fingir que lia o tal livro enquanto o que captava mesmo era a minha pele com a textura da pele dela, a minha coxa enroscando levemente com a dela, a minha alma arrebatada a beber os raios da reluzente alma dela... Ela? Nem aí... Cansada, reagiu previsivelmente ao chacoalhar do trem e dormiu como um anjo diabólico, aquele do tipo que sabe do imenso poder de sedução da sua inocência.

E foram grandes momentos em que me esqueci completamente de mim e entreguei o corpo àqueles feromônios que pairavam no ar. Porém, tudo que é bom e puro e certo é cobrado pelo tempo, esse monstro facínora, esse assassino de toda e qualquer ilusão. Porque, depois de algumas estações adiante o meu belíssimo pecado levantou-se para sair com suas sacolas. E percebi nela o derradeiro detalhe: aquela tatuagem no antebraço direito onde reluzia grafado entre dois coraçõezinhos, em escuras letras corridas e tombadas, o nome: “Lucimar”.

Ai, ai... francamente... Lucimar! Que raios de nome de amado é esse? Que me desculpem, Lucimares de plantão, mas um nome desses a conspurcar eternamente aquele templo de corpo, aquela pele de fogo... Ah, mesmo que achava: Não é um “Lucimar” suburbano qualquer que poderia ser o objeto de tanto afeto de uma deusa como aquela e, ainda por cima, merecer um registro definitivo dele em seu corpo, como fosse aquele nome dúbio o mais belo nome dentre os belos nomes...

E justamente nessas horas de profunda contradição de sentimentos, que minha mente toma rumos inesperados. Juro que naquele momento desejei de todo o coração que meu nome fosse Lucimar – mesmo sabendo que correria o risco de ser perfeitamente possível que um nome como aquele também pudesse habitar um corpo feminino... Mas se fosse para atender os desejos dela... Quer saber? Dane-se. O tesão não tem sexo.