ENCONTRO
Todas as mesas estavam ocupadas. Muitas famílias em mesas com mais de dez cadeiras, comentando situações que eram, na maioria das vezes, motivo de muito riso. Casais idosos, serenos, comendo em silêncio, como se estivessem sós. Jovens, sentados juntos, usufruindo do momento, onde o que menos importava era o alimento colocado sobre a mesa. As carícias, os olhares ternos, alimentavam bem mais que aqueles pedaços de pizza, semiabandonados. Garotinhos, já saciados, brincando de pega entre as mesas das diversas famílias que, antes daquele momento, nunca haviam se visto. Os garçons tentavam atender aos pedidos dos clientes...
- Mais um chope no capricho!
- Duas cocas zero, gelo e limão!
- Uma portuguesa gigante, sem cebola!
- Uma brotinho calabresa!
Acordei do torpor que toda aquela movimentação me envolvia, com o maitre perguntando – mesa para quantos? Senhor!
- Para um. Só para mim.
- Por gentileza, venha comigo. (Contornamos o salão e, indicando a porta de vidro, sem desfazer o sorriso de manequim, completou) - se o senhor fizer a gentileza de esperar dez minutos, pode aguardar nesta sala.
Eu não tinha absolutamente nada para fazer, nem a fome era tanta que me fizesse recusar a oferta. Entrei. O som vivo do salão ficou lá fora. No ambiente finamente decorado, com som ambiente digno do nome, várias poltronas cobertas com tecido nas cores da bandeira da Itália, dispostas em locais com indicativo de que, o ocupante deveria ser encaminhado às mesas para uma, duas, quatro, seis ou mais de seis pessoas. Nas mesinhas espalhadas, montes de revistas velhas que davam a impressão de estarmos em sala de espera de consultório médico.
Na categoria “solitário”, além de mim, apenas uma moça de aparência comum, sem nenhum detalhe que chamasse a atenção de alguém. Na categoria “par” um casal jovem, abraçado, trocava carícias e beijos furtivos e um senhor, vestido com terno preto e gravata borboleta quadriculada, com uma garotinha de vestido estampado que falava pelos cotovelos e ao fim de cada frase, repetia o bordão – Né, vô?
Pouco tempo depois que eu entrei, o senhor levantou e disse para todos:
- Somos seis. Podemos sentar na mesma mesa como uma família, cada um faz seu pedido e paga sua parte. Que tal? Que é que vocês acham?
Antes que alguém dissesse algo, a lâmpada do bojo pintado com o número 6 acendeu. Concordamos todos e fomos para o salão, ao mesmo tempo em que oito pessoas entravam na sala de espera. Depois de acomodados, com os cardápios em punho, o senhor falou.
- Mesmo sendo uma família temporária, devemos nos apresentar. Eu sou Armando, vivo “armando” pela vida, enquanto ela não “arma” nada contra mim. E riu-se do trocadilho mal feito em tom de gracejo. Essa é Mirna, minha neta, companheira de farras de pizza às sextas-feiras.
Fechando o cardápio, o rapaz falou:
- Eu sou Olavo e Bete é minha noiva.
- Eu sou... (a moça e eu começamos a falar, e paramos, ao mesmo tempo)
Com um gesto de mão a moça me estimulou a falar.
- Não. Você primeiro, faço questão.
- Mas você também ia falar.
- É que eu pensei que a ordem das apresentações iria obedecer aos ponteiros do relógio...
- Então, fale.
- Não! Você primeiro, por favor.
- Adulto é tão complicado, né vô?
- Mirna! Que é isso?!
Rimos todos pela espontaneidade da garotinha. Dirigindo-se à Mirna, a moça disse:
- Eu me chamo Letícia. Você sabe o que significa o meu nome?
- Eu não, mas meu avô sabe, né vô?
E seu Armando não perdeu a oportunidade...
- É uma palavra de origem latina e significa Alegria. As pessoas que recebem esse nome, têm o dom de espalhar a alegria, o entusiasmo e o entendimento entre as pessoas por todos os lugares onde passa.
- Eu não disse que meu avô sabia, né vô?
O garçom chegou para anotar os pedidos. Sugeri um vinho para comemorarmos nosso encontro. Letícia e Armando aceitaram.
- Por favor uma pizza quatro queijos e um Chiantti suave. (para Letícia) você me acompanha na pizza? Ela respondeu com um gesto de cabeça fechando o cardápio (eu disse ao garçom) pizza grande.
- Seu Armando falou, uma pizza grande, meio portuguesa meio aliche, e suco de acerola para esta mocinha.
- A nossa é grande, meio frango meio calabresa. Em vez do copo de suco, por favor traga uma jarrinha. Disse Olavo, com um sorriso de cumplicidade para Mirna.
- Posso trazer o vinho agora, senhor?
- Sim, por favor.
Enquanto falávamos com o garçom, um batalhão de auxiliares colocava o antepasto em nossa frente.
- Eu gosto muito dessa azeitonona, né vô? (Disse Mirna com uma azeitona espetada no garfinho de dois dentes). Elas vêm do sul da Espanha, né vô?
- Com licença senhor!
O somelier entregou a taça a seu Armando (o mais idoso tem a prioridade e a competência para avaliar a pureza do vinho).
Num gesto teatral, seu Armando, aspirou o aroma adocicado, girou o líquido na taça de cristal, observou a textura contra a luz e deixou o pequeno gole do vinho repousar sobre a língua antes de engolir...
O desenrolar da cena foi acompanhado pelos cinco expectadores que, hipnotizados, observavam os gestos rituais da degustação. Com o rosto iluminado pela satisfação, seu Armando só pode dizer – Magnífico!
Brindamos à amizade, à alergia, ao amor.
Hoje faz três anos que nos encontramos naquela sala de espera da pizzaria. Éramos seis. Seu Armando e Mirna, sua neta; Olavo e Bete, os noivos que casaram no fim do ano passado, durante uma festa belíssima onde seu Armando e a esposa foram padrinhos porque nossa amizade continua até hoje.
Aquele jantar transcorreu com a harmonia que todos desejávamos. Tomamos três garrafas de vinho e tivemos que levar seu Armando e a neta em casa. Quando ficamos sós, ainda na calçada eu disse a Letícia.
- Eu queria que nunca mais nos separássemos. Eu estou apaixonado por você.
Letícia me olhou com a admiração de quem ouve uma notícia absurda.
- Como é que você pode dizer isso? Acabamos de nos conhecer!
- Você nunca ouviu falar em amor à primeira vista?
- Mas você não me conhece. Nem sabe quem sou, o que faço, se sou solteira, casada, viúva, se tenho filhos, se sou uma criminosa fugitiva ou uma assassina em potencial.
- Que importância tem isso agora. Para mim, você acabou de nascer. Não tem passado, só futuro e o seu futuro faz parte do meu, porque a partir de hoje eu não existirei sem você. Nem pense para responder... Você quer casar comigo?
- Você está me deixando mais tonta que o vinho. Ninguém decide a vida assim, de uma hora para outra.
- Mas nossas vidas já fazem parte uma da outra. Estamos unidos para sempre. Nosso encontro estava escrito nas estrelas.
Rimos os dois da cena insólita. Estávamos na frente da casa do seu Armando, ela sentada no banco do carona do meu carro, com os pés na calçada onde eu, ajoelhado, mantinha a sua mão direita entre as minhas em posição de súplica...
- Vai menina! Diz de uma vez que aceita. Não é isso que teu coração está mandando?
A voz de dona Margarida, vinda da silhueta projetada da janela aberta era como um coro de anjos.
- Está bem, seu louco. Eu também estou apaixonada por você. Fui conquistada por seu olhar de cachorro pobre quando disse que achava que as apresentações deveriam seguir os ponteiros do relógio.
Puxei-a para mim e, de pé, na rua deserta, trocamos o primeiro e mais ardente beijo de amor, sob os aplausos de dona Margarida. Rimos naquela ocasião e ainda hoje, todas as vezes que lembramos.
Quando terminar o expediente eu vou buscar o ramalhete de flores do campo que encomendei. Minha cesta de papel está cheia de rascunhos dos versos que tentei fazer durante todo dia.
Como é difícil versejar, como eu gostaria de ter a facilidade, que tem o meu amigo Paulo Moreno, de colocar em poucas palavras e dentro da métrica e rima, o imenso amor que sinto, mas que não sei dizer. Pensei até em ligar para ele para pegar umas digas, mas assim os versos seriam dele, não meus e, não é justo mentir para a pessoa que tanto amo.
Finalmente, achei menos ruim, o soneto que fez temer os ossos de Olavo Bilac. Li para seu Armando (que vai ser nosso padrinho de casamento, junto com a esposa que foi a minha fada madrinha, na cena da calçada), ele achou uma maravilha, mas a generosidade dele é maior que o bom gosto e o senso crítico. Preparei um cartão e imprimi com laser dourado...
L E T Í CI A
És o amor que sempre sonhei,
Em ti, se revela a mais pura alegria,
És Letícia, no nome e no ser,
És o melhor presente que ganhei.
Amei-te desde o primeiro instante,
Amei-te e amo, cada dia mais,
Amor sublime que me satisfaz,
Que me transforma em eterno infante.
Quero viver contigo, cada dia,
Dividir, somando, a alegria
De saber que nunca haverá nostalgia.
Amar assim como eu te amo,
É ter a certeza constante
De que nunca estaremos distante.
Estou me sentindo como criança que vai viajar, não consigo pensar em outra coisa que não seja chegar com o ramalhete e entrega-lo à Letícia...
- Letícia, minha filha, você já varreu essa sala duas vezes.
- É porque eu quero que fique tudo impecável.
- Pode ficar tranquila que seu noivo não vai reparar em nada. Ele só olha para você o tempo todo e você, fica com essa cara de boba todas as vezes que fala nele.
- Mas ele é lindo, não é mãe? Eu o amo tanto. Desde que começamos a namorar, ele nunca disse ou fez qualquer coisa que pudesse me desgostar. Parece que adivinha meus pensamentos. Nós fomos feitos um para o outro. Apesar de estarmos sempre juntos, nunca deixamos de fazer o que gostamos.
- Mas você não tinha nada que ir se meter no jogo de bola que ele vai toda quarta-feira com os amigos.
- Foi ele quem me chamou.
- Mas não era para ir. Isso é coisa de homem, minha filha, e homem não gosta de se sentir preso.
- Na semana seguinte, dois colegas levaram as namoradas e de uns tempos para cá, vamos todas nós.
- Eu vejo as condições da sua roupa quando volta do futebol feminino que vocês jogam.
- E não é melhor assim? As namoradas mantendo as amizades que eles cultivam desde a infância?
- No meu tempo não era assim.
- Mas agora as coisas estão diferentes.
- É. Eu vejo muito bem. Nem precisa me dizer.
- Meu bem vai ficar feliz quando chegar e encontrar seu Armando e dona Margarida aqui. Eu não falei nada a ele, mas hoje faz três anos que nosso namoro começou. Quando sai da repartição encomendei a pizza, o vinho e passei na casa de seu Armando para chamá-los. É tudo surpresa para meu bem...