A ÚLTIMA COMPANHIA

Não escolheu entre sapatos adequados e roupas bem ajeitadas para a ocasião, nem tampouco ficou se observando no espelho. Nem mesmo havia em seu quarto ou em qualquer cômodo de sua casa um destes espelhos compridos que pegam todo o corpo. O quarto dividia com um irmão, que bocejava agora folheando uma revista, deitado na cama onde se amontoavam roupas amarfanhadas.

Foi diante da porta da sala, entre a luz da varanda – ajudada pelas luzes dos postes – e a luz da sala que ele imaginou se ver como estava. E bastou um sorriso. Mas já se sentia exausto, e mesmo se via voltando, sentando no sofá desforrado da sala, arfando, feliz e cansado. Seus olhos languidos buscaram essa peça. Entretanto pôs-se firme, decidido, mesmo viu as pontas brancas do seu all star preto como bicos de botas, e talvez seu gesto de ajeitar sem ajeitar a gola da blusa fosse de alguém que pensasse em ajeitar a gravata.

Ao perceber a hora chegada sem nenhum sinal de excepcionalidade embora, pôs-se a fresco, não antes de avisar, embora laconicamente que já ia, mal se voltando por sobre os ombros, e fora talvez a mãe ou o irmão aquele sussurro inaudível de alguém que respondia.

A rua, mesmo seguindo-a pela calçada, pareceu-lhe órfã de passos. Numa noite de sábado! Exclamou alto seu pequeno ego satisfeito num suspiro. E dobrando a esquina encontrou um movimento intermitente de carros de passeios. Os faróis o espionava, lambendo-lhe a cara. Desviava o rosto com um acanhamento sórdido. E em sua mente labiríntica e caótica, cheia de fumaça de diesel e buzinas, pairavam pensamentos intensos, densos, escorrendo quietos como infiltrações.

O alvoroço começou a arder-lhe como febre nas bochechas, e sentia frio na espinha, e calor junto ao rosto abrasado, esperando pacientemente o sinal fechar, as mãos enfiadas nos bolsos da bermuda, e atravessando, ao sinal fechado para os autos, empertigado, desculpando-se logo a se acanhar. A rua se lhe pareceu desse lado mais animada, piscando a noite, e já não tinha vergonha dos faróis, mesmo nem lhes reparava. Nascia-lhe um animo novo, espumante como bolhas de champanha. E outros transeuntes passavam por ele, confundiam-se, confundindo-se, rindo-se sem saber de que ou de quem.

Chegando a praça acesa, inclinada, numa confusão de bancos pichados de concretos; gente se reunindo, arvores de copas sujas e escuras perdendo-se numa imensidão abobada de bruma fosca-luz, assim ele se sentiu novamente acanhado, envergando o corpo tal como se carregasse um fardo pesado nas costas. E colocou as mãos nos bolsos por que não achava nada melhor a fazer. Era cuidar em esconder as mãos. Olhar para o chão, fungar, suspirar, fingir impaciência, calma ao mesmo tempo.

Descobriu-se solitário. Mas não viera ali encontrar um amigo? Sim se lembrou: a pouco havia conversado no MSN com ele, então tudo combinado em letras abreviadas, caracteres novos. Tão ligados como se falassem de perto, mas nem tão longe estavam. O celular! Lembrou, mas foi com mãos tremulas, achando tudo fácil como as crianças ali em volta do carrinho de pipoca, que discou, e arfava como afogado ouvindo o toque continuo a chamar do outro lado, e a voz pausada, calma, firme, dizendo, Alou, alou, e gaguejando respondeu, Sou eu, eu, Charles, você vem mesmo, Sim, mano, sim, já tou chegando ai, guenta as pontas. E sorriu, mas esperou nervoso, escolhendo um canto escuro como se escondesse de alguém. Quem? De si mesmo talvez, um Si mesmo que preferia já estar de volta aquele sofá embora soubesse – mesmo não acreditando – que preferiria a cama logo de uma vez, tão cansado chegaria de conversar, beber, rir a vontade. Uma noite legal! Tépida!

Realmente ele apareceu assim de uma rua iluminada do outro lado, próximo a uma galeria muito acesa, com as mãos livres, os cabelos longos avulsos caindo sobre os ombros, a camisa preta com uma cruz cor de metal estampada (era?). Nem sorria nem estava enfezado. Era alvíssimo, alto, empertigado, usando calça camuflada verde-musgo, coturnos pretos, pulseiras de couro em ambos os punhos. Uma mão comprida de dedos longos, cheia de anéis, ele o estendeu para um aperto. Tremia, sabia, e Charles sabia que ele tremia engolido naquela blusa grande demais.

_Vamos beber então cara – disse assim engolindo na verdade algumas consoantes necessárias.

_Calma mano – disse jogando os cabelos longos, volumosos e claros para trás – vamos andando – convidou-o, e mesmo sorriu para o ente encolhido que o acompanhava.

_Vamos mesmo nesse lugar maneiro que rola som adoidado – disse sufocado de uma ânsia perturbável.

_Sim, bandinhas maneiras. A rapaziada leva som underground maneiro – respondeu Charles esfregando as mãos como se fosse frio, rindo ou sorrindo, ele não podia, mas saber.

Seguiam pelo meio fio de uma rua movimentada. Minas e playboys, mesmo foi Charles que disse num riso cheio de ironia.

_Blusão maneiro cara – disse para o alto e empertigado Charles, que sorriu, olhou a própria estampa da blusa preta, e complementou, Você vai se amarrar na galera. Na verdade tinha medo, e num riso espalhado, árido, fez parecer convencer ao outro sem tanta certeza. Queria que o momento demorado fosse aquele: Charles assim do seu lado, como amigos, irmãos, e por que então havia aquele bicho roendo suas entranhas?, Por isso tremia devagar, cada parte, e apertava bem os maxilares, um pouco atônito pelas ruas movimentadas. Logo dobraram uma esquina menos movimentada, com apenas algumas isoladas carrocinhas de cachorro quente. E uma criança, sobre os braços do pai, deixou escapar um balão prateado, e ficou dizendo, Fo’e borá, Mas Charles correu empertigado, deu um salto, alcançou o balão e devolveu ao menino, que não soube agradecer, mas o pai o fez.

Admirou aquele gesto, embora percebesse que Charles ficara um tanto desconsertado. Mas entrando a um beco, Charles pareceu assumir um novo ar mais forte, mesmo olhou aquele que o acompanhava, mostrou-lhe o lugar como um túnel saindo de dentro do chão. Dali já se ouvia o som ensurdecedor da bateria, o som com cheiro de roupa preta. Cresceu dentro de si um medo que fazia o coração bater, as pernas tremerem, e som das baquetas era mais fechado. Seguiu impelido por Charles, descendo degraus tortuosos. E o som crescia, ensurdecia e enchia de um animo seu mais recente coração. Um coração que vestia, pouco a pouco o ajustando.

Com efeito, um palco muito pequeno apertado entre uma galera que se amontoava acotovelando-se uns aos outros numa algazarra que enchia a atmosfera de um calor humano. Aos cantos havia um bar de tijolos pintados com um fundo cheio de garrafas estilosas empilhadas em prateleiras que pareciam transparentes. Um homem de barba selvagem mexia copos de forma lépida e dinâmica, rindo muito, dirigindo-se a Charles – que se inclinou sobre o balcão – com muita intimidade. Recuou a um canto, observando atônito seu espaço. Charles voltou-se para ele, rosto sorridente, cenho carregado, estendo a mão comprida a lhe oferecer uma lata de cerveja, que apanhou com certa sofreguidão estabanada. Uma mão tocou ao ombro de Charles, e ele se voltou para este que o tocou, e virou-se de costas. Riam, falavam em meio a balburdia do som, cumprimentavam-se repetidamente.

Pensou meticulosamente em abrir a lata de cerveja, aceitando aquele cantinho onde se sentou: um pufe preto e um pouco empoeirado, tendo volta e meia alguém lhe esbarrando, e pedindo desculpa sem olhá-lo muito, com olhos pintados de maquiagem negra ou violácea.

Trocou a musica, a banda. Não soube bem. Continuou ali sentado, lembrando que Charles dissera, Olha cara fica ai que eu já volto, e o outro – de olhos apertados e cabeleira alvoroçada – o olhara assim, assim com curiosidade de quem perguntaria muito mais tarde, Eu já volto, e tocando ao ombro do outro, virou-se e saíram ambos misturando-se a muvuca espremida cada vez mais.

Ensurdecedor era o som, gutural a voz. A lata de cerveja,o barulhinho, mas fora durante o “até já”, pode ter sido depois. Sentiu dor nas costas. O pufe era incomodo. Tinha dinheiro para outra cerveja, até outras, mas não tinha animo para se levantar e pedir. Começou a sentir uma suave sensação de morte, ali sentado, e olhando tanta gente se apertando num espaço mínimo. Pensou no sofá que o esperava, em Charles que voltaria, no balão prateado do menino que voou e se perderia se não fosse Charles resgatá-lo.

Era impressão da posição imóvel ou o tumulto de roupas pretas diminuía? Aos poucos anestesiava a dor – se antes nem fora dor – sensação de incomodo na posição única e paralisada. Seria a morte? Perguntou-se sem espaço para ressentimento. Ainda viria, dissera, dissera, que esperasse,mas aos poucos percebia que estava vivo e precisava reagir. Mas... aos poucos descia uma lesão ainda mais dorida. O sofá desforrado ouvindo suas confidencias, “Tudo correu tão bem”, mas nem sabia para que, nem mesmo Charles lhe perguntara por quê. Assim foi com o balão, resgatando-o, um instinto.

Não dói.

Agüenta a dor imóvel da anestesia até que talvez amanheça com tudo morrendo em pedaços sujos de papel no chão indefinido do lugar revelado.

Rodney Aragão