Lembranças.
Ela senta cuidadosamente na cama e observa os pés no chão. As mãos brincam com a barra do vestido já velho, mas ele traz tantas boas lembranças que ela se nega a jogá-lo fora.
Ela faz o mesmo com as amizades já gastas, não, ela não se refere às amizades de anos, mas às amizades já gastas por discussões e problemas. N. lhe fazia tão bem.
Fazia? Não no presente, no passado. Fez. Sim, ela lhe fez muito bem.
Foram amantes sabia? Enquanto observa os pés no chão, os olhos procuram nas paredes do quarto aquele retrato que as duas sempre gostaram, a última foto, do último dia, última vez em que se amaram. Achou. Os olhos fixaram-se nele, N. tão linda, os cabelos esparramados no travesseiro, e ela tão perto dela, na foto seu rosto parece tão sereno... Ela levanta da cama. Pega o retrato e olha atentamente cada detalhe, ela ainda consegue lembrar-se de cada minuto daquela tarde, daquela noite, de tudo. Passa os dedos vagarosos sobre o rosto dela, como se, ao tocar na foto, pudesse voltar no tempo e ter tudo aquilo novamente. A mão sobe de encontro a sua boca, e ela toca os lábios devagar, traça o contorno com dedos suaves, morde o lábio inferior ao se lembrar do beijo dela.
Chega! Ela diz, chega! Viver de lembranças não adianta nada. Deixa o retrato sobre a mesa, volta a se sentar na cama. Cruza os braços sobre o peito, no seu íntimo acha que assim pode se proteger das dores da vida. Pensa. Lembra. Encosta-se na parede fria. A luz do luar entrando sorrateiramente por uma abertura na cortina, projetando uma linha fina e luminosa no chão. Ela observa.
Hoje ela vive sem amantes, namoradas.. sem ninguém especial nesse aspecto. N. foi a última até agora. Fácil seria deletar ela da sua vida para sempre. Fácil? Mentira, é difícil. Como conseguiria deletar alguém que lhe fez tão bem? Foram apenas três meses, tudo bem, mas foram momentos maravilhosos! No começo do fim, irônico pensar assim, ela sentiu revolta, tristeza e até mesmo ódio da amada. Sentiu seu amor trocado. Sentiu-se usada como um daqueles brinquedos que temos quando criança e que, quando crescemos, deixamos de lado. Brincaram com ela. Mas ela não consegue sentir-se isenta de culpa, ela se permitiu sentir tudo isso. Permitiu-se amar, brincar, sorrir... e até sofrer, chorar e gritar. Na matemática do amor 1+1 nem sempre foram 2. Ela sofreu.
Acorda. Esfrega os olhos com força com o punho. Havia adormecido. Sonhou com o passado. Levanta e toma um copo d'água. A mão bate sem querer no retrato sobre a mesa, os olhos se enchem de lágrimas. Não, não deve chorar. É passado. E ela prometeu a si mesma nunca mais chorar por N. Ela sabe que não vale a pena, que não muda nada. Agora lhe resta apenas a amizade dela.
Mas ela disse que ligaria esta noite. Será que há um problema com a linha? Ela pega o telefone. Funciona perfeitamente. Ela esqueceu. Uma onda de calor sobe pelo corpo, fecha a mão em punho. Um soco na mesa. Droga! Fecha os olhos na esperança de se acalmar, respira fundo, conta até três, pronto. Dá as costas ao retrato, olha-se no espelho. Que rosto triste. Aproxima-se da sua imagem refletida, estica os dedos e observa a expressão cansada que aparece em sua face. Tenta sorrir, soa tão falso. Deixa os braços caírem ao lado do corpo, senta na cadeira ao lado da cama, e observa em silêncio.
Porque ela não conseguia deletar N. de vez da sua vida? Tudo bem, eram amigas, o amor ficou no passado, guardado na gaveta de sentimentos que hoje cheira a naftalina. Mas a amizade, ora, a amizade era pra ser tão viva! Semanas atrás ela andava triste porque ela havia cometido um deslize. Ora ela sabe que deslizes são normais, somos humanos, N. não seria diferente. Mas, cada deslize é um corte pequeno que é feito no coração da gente. E seu coração já havia suportado tantos cortes antes, que agora, cada novo corte abre feridas antigas lá do fundo, e isso pesa demais no peito. Afoga os sentimentos bons de agora, traz as dores que há muito haviam sido esquecidas.
Levanta, estica os lençóis na cama. Deita. ela não vai ligar hoje, talvez ligue amanhã balbuciando uma desculpa qualquer, "não pude", "não deu", "me desculpa?". E ela vai acabar desculpando. Mais um cortezinho ela pensa. Pequeno logo sara. Mas mal sabe ela que esses pequenos cortes são os que mais ardem, e que, no momento de fúria, abrem uma ferida gigante no peito, como um buraco negro, que suga as boas lembranças, os sorrisos e perfumes, e preenche tudo com um véu negro, com tristeza.
Fecha os olhos, tenta dormir. Olha uma última vez para o telefone, os olhos correm para o relógio na parede. Meia noite, ela não vai ligar. Adormece.
Sonha, dorme, descansa. Quem sabe amanhã tudo mude, alguém apareça para lhe mostrar como o mundo é belo lá fora, quem sabe ela resolva aparecer e dizer que sente muito, que quer mudar. Quem sabe... Dorme, apenas dorme.