Maldito batom
Ela já vai se levantar. Mais um suspiro e pronto! Já está de pé. Mais quinze minutos e rosto lavado. E o batom ardente. Maldito batom! Já é hora do trabalho e como sempre ainda estou aqui. Vou eu. À mesa bordada de papéis cultivo as respostas para as perguntas desta noite. Preciso ensaiar para não vacilar. Preciso dizer o que não dá mais, preciso tecer palavras exatas e transparentes. Talvez nem tanto. Preciso acabar de vez com a angústia perversa destes dias. Entrarei reto e calmo. Olharei a mobília e depois andarei até encontrar a mesa da cozinha. Pego um copo com água. Não. Pego um copo com suco. Não, uma cerveja. Pego uma cerveja, e entre um gole e outro me desfaço das roupas. Visto algo fresco e vou até à sala. Ela já estará em casa. Vou para o sofá e a espero. Lá eu começo tudo. E digo que já não dá mais. Posso inventar que a traí. Posso inventar que não a amo mais. É isso mesmo. Vou me adiantar. São seis horas e é hora de ir para casa. Bolso, chaves, porta aberta. Entro, mobílias, mesa da cozinha. Água. Sofá. Espero e espero e espero. Ela está ao meu lado. Pego o jornal. Esportes, classificados, cultura. Revista, fofocas, fofocas. Água, água, água. Então eu ouço um ‘oi amor’ e fiz o que não podia. Olho para ela. Maldito batom que me envolve. Maldito batom de todos os dias.