O ENTREGADOR DE PÃO
Gostava do trabalho que fazia. Talvez para um iniciante fosse um trabalho pesado, enfadonho ou sem valor algum na escala das classes sociais. Mas não para Pedro que se acostumara com aquele emprego. Há mais de dez anos fazendo o mesmo serviço. Isto lhe possibilitava conhecer todos os moradores do bairro. Chamavam todos eles pelo nome, sabia de cor e salteado a rotina de cada um deles. Através de alguns exemplos podemos ilustrar a boa convivência que mantinha com os estimados clientes A senhora Rute do número 66 que toda sexta-feira recebia a visita do amante, exatamente na única noite da semana que seu marido, senhor Geraldo saía com os amigos para jogar sinuca no bar de Paulo que sabia do caso, que também nada comentava. Já o casal que morava na casa 101 nunca saía de casa se não fossem os dois juntos, nunca encontrara apenas um deles, onde um estava com certeza estava o outro. A viúva que morava no segundo andar do prédio da primeira esquina com a Avenida Principal era a tração dos maridos infiéis, assim como era a pior inimiga das referidas esposas conformadas. Sem contar o seu Mariano dono da bodega onde quase todos os moradores faziam compras no crediário, com exceção do pão de cada dia já que ele era o entregador oficial naquela área de controle social dos pães, com gostava de chamar.
Logo cedo, às quatro horas começava a peregrinação, em cada porta deixava o pacote de pão fresco, com exceção de alguns idosos que não podiam descer nem o batente. Mantinha-se firme pedalando a bicicleta até as oito horas da manhã, ou até que o último morador recebesse a preciosa encomenda diária. Todos o conheciam, de longe o avistavam em cima da bicicleta com as quatro enormes caixas de pães, duas em cada bagageiro, um na dianteira e outro na traseira.
Pedro estava tão acostumado com a rotina que nem percebia o passar das horas. Isto é, num dia normal, não naquele fim de madrugada. Estava escrito no livro do destino que sua rotina mudaria para sempre depois do episódio que lhe aconteceria. O sol ensaiava botar a cara de fora, preguiçosamente e de forma tímida soltava os primeiros raios solares, pintando de amarelo a barra do vestido do céu que até então reinava absoluto com a sua magnânima escuridão. Há quase três meses que a senhora Gilda da casa número 236 ficara viúva e desde então entrara em profunda depressão. Não havia outra maneira de ser, a partir daquela data ele subia os cinco lances de degraus, entrava pela porta de frente como se fosse da família, pois a empregada que cuidava de dona Gilda era amiga sua. Tornara-se parada obrigatória para tomar um gole fresco e saber as últimas fofocas. Porém naquele dia nada estranhara a princípio, a porta como de costume estava apenas encostada, só estranhou a ausência do cheiro do café passeando pela casa.
─ Margarida deve ter se atrasado. ─ pensou Pedro ao entrar e se encaminhar para a cozinha como fazia todos os dias. Para sua surpresa não encontrara Margarida grudada ao fogão, apenas ouviu o som de chuveiro ligado. Outro fato estranho, é que Margarida nunca tomava banho naquela casa, pelo menos àquela hora do dia.
─ Margarida! ─ gritou Pedro.
Não houve resposta. Colocou o pacote em cima da linda mesa de mármore e gritou mais três vezes, sem êxito. Pensou em procurar se havia alguém em casa, mas logo desistiu da ideia, ainda tinha muitas entregas para fazer. Quando estava saindo apareceu uma mulher enrolada numa minúscula toalha, permitindo a exibição das coxas firmes e roliças. Por uma fração de minuto ele ficou sem voz, apenas observando a recém chegada, era notório a exuberante beleza da moça. Pele morena, lábios carnudos e cabelos encaracolados complementavam os adornos necessários para ela se tornar numa escultura de inigualável valor. A voz da moça trouxe Pedro de volta a realidade. Ele ajeitou o boné e pediu desculpas.
─ Desculpe-me, pensei que fosse a casa de dona Gilda. Acho que errei de casa.
─ Aqui é a casa de dona Gilda. ─ respondeu a moça.
─ Não sabia que haviam contratado outra empregada.
Antes de responder, a moça sorriu fazendo aparecer os brancos e perfeitos dentes, deixando Pedro ainda mais desconcertado.
─ Dona Gilda é minha avó materna e Margarida está no hospital.
─ Ela está doente?
─ Não! A minha avó passou mão ontem e foi encaminhada para o pronto socorro e Margarida está lá com ela.
─ Como está o estado de saúde de dona Gilda?
─ Estável! ─ fez uma pequena pausa complementando em seguida ─ O senhor deve ser Pedro o entregador de pão.
Antes que ele confirmasse alguém começou a gritar.
─ Neuza! Neuza! Estou chegando meu amor.
O silêncio reinou momentaneamente no interior da cozinha. Neuza foi tomada por um frenético desespero.
─ É Alfredo!
─ Quem é Alfredo? ─ perguntou Pedro.
─ Meu marido. Ontem quando soubemos da situação delicada de vovó fiquei tão desorientada que não trouxe nada comigo, com certeza ele veio trazer umas roupas pra mim. Ele é muito cuidadoso ─ respirou pausadamente e depois complementou ─ E muito ciumento também. Se ele te encontra aqui comigo é capaz de cometer um crime.
Pedro passou a mão direita em volta do pescoço, como se já sentisse as mãos do agressor lhe agarrando.
─ Já sei. ─ falou Neuza.
─ Já sabe o que?
─ Suba a escada que dá acesso aos quartos e se esconda por lá que eu vou segurar Alfredo enquanto você arruma uma forma de sair sem ser visto.
Pedro subiu rapidamente a escada como se fosse uma criança brincando de esconde, esconde. Precisava achar uma janela ou algo parecido para poder sair da enrascada, retornar pela escada e sair pela porta da frente era praticamente impossível já o acesso a escada ficava junto à porta da cozinha com a sala. Então descartou urgente esta possibilidade. Chegou ao topo da escada e notou que havia apenas duas portas, uma devia ser o quarto de dona Gilda e a outra deveria ser o quarto de hóspedes. Nunca estivera ali antes, durante anos só visitara a cozinha, aquela área era totalmente desconhecida. Mesmo no quarto dava para ouvir vozes no andar de baixo. Não conseguia distinguir o que falavam, pelo tom da voz o recém chegado estava nervoso. Após alguns segundos de silêncio ouviu passos subindo a escada. Pedro ficou nervoso. Precisava encontrar urgentemente um esconderijo. Olhou em volta, havia apenas uma cama de solteiro com a companhia dum velho abajur em cima de um desgastado criado mudo e um antigo guarda-roupa. Tomado pelo impulso do medo entrou no guarda-roupa e segurou a porta por dentro para que evitar que se abrisse. Não demorou muito para o casal entrar no ambiente. Ela tentando se explicar, ele nervoso acusando-a de infidelidade.
− Onde está ele?
− Ele quem? – quis saber Neuza.
− Tu pensa que sou burro? Eu sinto cheiro de macho querendo invadir o meu território.
Neuza com seu jeito meloso abraçou Alfredo e o beijou carinhosamente. Ele totalmente dominado pelas carícias dela, se entregou. Juraram fidelidade para sempre. Ambos pediram desculpas e terminaram fazendo amor ali mesmo sob o olhar atônito de Pedro que não conseguia desviar sua atenção, porque o buraco da fechadura ficava frontal a cama.
Psicologicamente os minutos transcorriam numa terrível velocidade. Pedro sabia que mais da metade dos seus clientes ainda não recebera os pães e se não encontrasse uma saída, poderia perder o emprego mediante as inúmeras reclamações que seriam feitas ao seu patrão. Não era irresponsável e ali naquele cubículo jurou que se conseguisse se salvar e não perder o emprego nunca mais entraria na casa de uma cliente. Silenciosamente começou a rezar uma oração que nem sabia se realmente existia.
O casal exausto se permitiu ficar deitado na cama. Ele recuperando a forma física, ela abraçada ao companheiro. Pedro tudo acompanhava, torcia que eles caíssem no sono para então possibilitar sua fuga. Foi então que o acaso lhe deu uma lição da qual ele jamais esqueceria na vida.
− Neuza, eu acho que vou tomar um banho frio. – falou Alfredo desvencilhando-se dos braços dela. – Onde encontro uma toalha?
Sem desconfiar que o entregador de pão estivesse ali Neuza falou:
− Veja se encontra uma no guarda-roupa.
Foi então que ela percebeu que poderia ter cometido um erro, já era tarde de mais para mudar o rumo da situação. Alfredo tentou abrir a porta sem êxito, estava trancada, porém não havia chave alguma presa a fechadura. Usando toda a força conseguiu escancarar a porta e se deparou com o outro entre várias peças de roupas.
− Quem é você e o que faz aí dentro? – quis saber Alfredo com tom intimidador.
− Se eu falar que sou o entregador de pão o senhor acredita? – respondeu Pedro.
Antes que Pedro tentasse alguma coisa foi agarrado pelo pescoço e arremessado para fora do esconderijo. Em seguida ele foi arrastado escada abaixo até a sala e a situação só não foi pior porque Margarida chegou para buscar roupas e levar para dona Gilda no Hospital. Em poucos minutos tudo foi esclarecido e aparentemente a normalidade também. Porém nunca mais Pedro entrou na casa de dona Gilda e nem de outra cliente.