MINHA DOCE LÍDIA

Ai, ai, a vez primeira em que eu ouvi seu nome... ou em que eu me apaixonei deveras! Sim, contanto não para a razão e a realidade, tão corriqueira entre os homens do mundo... Eu me apaixonei deveras, verdadeiramente: não para o calor insano dessa massa juvenil, (ah o que se diz amor é sempre um qualquer apreço corporal!) eu não. Eu me apaixonei por Lídia. Como aos alaúdes e às cantigas, e às antigas serenatas, eu me apaixonei por ela. Eu me apaixonei por Lídia. Ou melhor, “Maria”. “Maria Lídia”, que esse é seu nome, verdade. Mas como não gosto muito de misturar as coisas, — já que a minha mãe era Maria, e Maria também era a minha avó, e duas de minhas irmãs acabaram sendo também Marias, todas ao pé da outra, Maria também, a mãe do Cristo; então a minha Maria se chama Lídia, que possui o que nenhuma outra das púberes plebeias do meu tempo possuía... a mim.

...Lídia. Lembro-lhe intacta: Com seus cabelos um tanto cacheados, negros a mais não poder, tinha os olhos que os via sempre verdes. Mas castanhos, castanho-esverdeados, eu os diga, e os lábios grossos no entanto tênues. Doces, doces que pareciam, — não direi de mel, para não semelhar-vos a vós isto um clichê da minha linguagem, embora fosse a pura verdade: mel, doces como lambuzar-se todo. Não direi também do gosto, porque o não sei, nunca o provei. Nem nunca tive nada de Lídia: nem seu toque, sua ternura ou sinceridade, suas infantilidades, nem resposta a... ao meu amor. Tive apenas o tempo. O tempo da minha vida inteira... para ela.

Perdão, pois creio que faltou me apresentar: meu nome é Afonso, Afonso Sagres de Ribeiro, e minha vida vivi toda em Realenzo, interior de Soarã. Um lugar bonito, rico, parco de bons costumes e finezas, no entanto promissor, — pensou-se: Mas, na verdade, Realenzo, ao fim das contas, não deu em nada: nem em Lídia para mim, nem em nada. Um povo xucro que até tem lá seu presto, já que muita vez honesto e trabalhador; Realenzo emancipou-se muito pela riqueza das lavouras e pelo lavor de seu povo, inclusive meu pai, pioneiro, herdeiro de um montante de terras que eu não saberei calcular em fortuna. Teve eu como filho único e três donzelas, na ordem contrária; primeiro elas. Uma muito mal educada, inclusive: a única que não era Maria. Contudo, cuidou-nos muito bem, materialmente, até um dia enfartar. Verdade é que, nesse momento de nossas vidas, meu pai já tinha dado cabo à grande parte de sua herança com mulheres e outras pendências patriarcais, como o jogo, por exemplo; mas quando morreu, contanto, foi a derrocada: Seus genros acabaram-lhe com a outra parte que sobrara da fortuna e eu com minha mãe passamos a viver de juros e economias, só isso. A minha vida inteira antes de Lídia não é mais que isso. E, depois de Lídia, a minha vida... Não há depois.

Ai, ai! Lídia! Como vinha dizendo, a primeira vez, primeiro foi seu nome que eu ouvi. Era Dia de Finados. Havia sempre missa em Realenzo nesse dia e muita gente vinha de fora rezar seus mortos aqui enterrados. O cemitério de Realenzo abriga muitos túmulos, desde muito. Conto o primeiro a enterrar-se ali o tataravô de uma senhora rica, herdeira de terras: 1772. Ou melhor, essa era a data de seu nascimento. De morte, não lembro. Mas, findada a missa, a procissão dos mortos corria grande estrada abaixo para lá. Assim como nós, eu e minha mãe, e todas as minhas irmãs, fazíamos o mesmo trajeto rezar a nosso pai. A nosso pai e a nossos avós, e mesmo a um pequeno que morreu de nascença de minha mãe. E havia os tios e outros parentes também... Enfim: nesta vida se morre muito! Conquanto, lá estávamos quando aquela senhora já de idade, uma senhora de cabelos brancos, encarquilhadíssima, dissera assim um nome, com a voz lamuriosa, chamando-me d’imediato a atenção: “Lídia!”

Lídia! E emendara chorosa:

— Veja o que nos tornamos um dia, minha doce Lídia!

Não creio que Lídia estava interessada deveras nos lamentos senis daquela senhora; mas, com seus olhos cheios de uma tentação dócil e perpétua, quando me voltei à velha, quem me fitou foi a jovem, ela, a quem não pude parar de olhar um só instante depois. Como não a conhecera ainda? Como a não percebera em nenhum momento aqui! Parecia tudo atrasado no tempo para mim. Talvez fosse o destino... eu voltar-me e vê-la agora... era... Bem! e o melhor de tudo é que o túmulo de meu irmãozinho natimorto, após transferirem um outro mais antigo acima dele dali, ficara praticamente à frente, meio à esquerda, mas de caras voltadas ao túmulo em que estavam elas, me possibilitando assim pausar e silentemente observar, olhar, demoradamente, certo aos olhos dela. Segar Lídia com a exatidão da minha lente reta... Sim! E assim, estranhamente, consumar em ideia a minha paixão...

A família de Lídia não era dali, percebia-se com clareza, já que aqui nos conhecemos a todos. Seu túmulo era vultoso, rico, não com uma fotografia de perfil apenas, só que todas em preto e branco ou sépia, mais bilhetinhos e cartinhas e mensagens, um memorial arredomado por uma vidraça lisa que decorada nas bordas e todo em mármore... Engraçado, porque acho que jamais a conhecera não fosse esse dia macabro, o de finados, e essa ocasião exata. As coisas como devem ser.

Estudava na mesma escola que eu, vim a descobrir mais tarde, e creio que morasse próxima a minha casa antigamente, veja só! Ela era apenas um tanto mais velha que eu. Porém, a mim pouco importava um tal detalhe, que seria mais próprio aos interesses do vulgo, — o amor a mim é eternidade, nada a menos que isso! O que rente em mim me aprisionara nela nem fora ela, deveras, esse átomo fotográfico do mundo; a transcendia. Era sim um tal olhar meigo que parecia cegar-me, instantaneamente, me tirar do meu mundo, um olhar às vezes quedo e, se próximo, distante, cheio de uma empatia pela vida e as pessoas que parecia... creio que único! me fascinava a tenuidade, a leveza, o seu gesticular imóvel mas que me parecia flutuar nos olhos meus! Como uma história toda a se inventar, assim eu cria... Se era mais velha mas parecia de inocência criança, parecia que me pedia... alguma coisa... que eu nem sabia dar... Ah meu Deus, Lídia! Não te sei descrever.

Por conseguinte, não pensei duas vezes: no outro dia, comprar-lhe-ia eu flores, desse no que desse! Flores! Um vaso... não! Um buquê! O mais caro! Afinal, era o primeiro presente que daria à mulher. Nunca havia amado antes e amor, saiba-se: é uma vez apenas na vida.

Deveras, fui comprar-lhe as benditas flores, não obstante chegasse à floricultura e uns senhores vadios sentados em um banco à frente da loja começassem a zombar de mim: “Lá vem o lenga-lenga!” Acho que assim me chamavam, fora outros apelidinhos infames que me impunham, e faziam uns gestos com a mão caída: O caso é que eu era, digo mais na jovialidade, um tanto quanto delicado, até um pouco feminino, (“parado”, também, como costumavam dizer), mas jamais tive tendências para atividades sexuais diversas do comum: homem/mulher... Isso me deixava raivoso! Ah, ódio! Se falasses mais alto um pouco que a minha imensa complacência eu seria capaz de torturas e de massacres! Holocaustos inteiros eu pensei a partir da minha mente aturdida! Mas sempre fui mais pautado e comedido. Ademais, não valia a pena mesmo, ainda mais naquele dia... em especial... Logo que avistei as flores, vi o rosto de Lídia refletido em cada pétala. A loja pareceu-me então inundar-se misticamente, como se o pólen desprendesse delas semeando o ar de uma luminosidade rosa, como ao pó de estrelas cadentes, como ao pó de fadas, de Sininho em “Peter Pan”, ah, e, na névoa que se fizera ao redor de tudo, apareceu-me ela, qual o néctar daquele instante: toda em verde claro, translúcida. Vinha como se para beijar-me ou me levar consigo, definitivamente; não qual uma vida vivida, vinha como um primeiro encontro e já cheio de eternitude, clarividência, consagração. Escrevi creio que uns vinte sonetos com o tema dessa tarde fantástica (vede vós que não sou de poucas palavras!) e creio que todos louváveis. Por desventura, no entanto, era imagem só, de minha cabeça...

Foi então que, do meu pequeno surto, acordei e, imediatamente, retomei a realidade. Peguei as flores, paguei-as, obviamente, e me fui andando. Já naquela hora era tarde da tarde, pois eu tivera de cumprir ainda antes disso todos os deveres do lar: passei pano no chão, fiz almoço, lavei louça, os calçados; eu era quem fazia tudo à minha mãe. No entanto, de qualquer forma, sempre pensei que a melhor hora para se ver quem se ama era às caladas das 18 horas, quando a tarde já está poente e o perfume das rosas se põe a maturar a frescura do ar, assim o enxergava, — e por isso não tive pressa. Me fui andando até mesmo lento, quando, quando me aproximava novamente de casa, uma cigana... Maldita! Que me faltava era a cigana, só isso!

Praticamente, nunca havia ciganos ali. Mas naquele dia, digo o anterior, o de finados, viera uma caravana acalantar-se em campo aberto, uns lotes baldios de posse da prefeitura esparramados pelas redondezas de Realenzo... E um deles, dos ciganos, a cigana, me parou em plena rua: “Deixa eu ler a sua mão, meu rapaz!” Eu bem que poderia ter dito:

— Não! Fora daqui, sua falsária! Não és digna de tanto!

Ou com maior educação dar-lhe-ia uma esmola qualquer e me iria embora somente. Isso ou qualquer coisa. Mas, em vez de qualquer coisa, disse-lhe de impulso, complacentemente: “Por favor!”, estendendo-lhe a mão direita, como quem esperasse algo, com a testa enrugada de ânsias mil. O caso é que durante a paixão latente o ser humano se torna cheio de estranhezas, — bem o considereis vós —, saindo da atitude cotidiana e propriamente da própria razão que tem. Se torna idi... i-di-os-sin-crá-ti-co... Quero dizer: naquele momento eu jamais poderia negar a uma cigana que deveras lesse a minha mão, era como um conto de amor nascendo e da forma clássica e mais bela. Era até mesmo ao modo das canções vulgares embaladas pelas rádios para o público comum... Tudo na minha vida assim se invertia. E foi assim que a cigana o leu, o destino meu:

— Meu jovem, hummm...

Ela sabia causar ansiedades. Quase que meu coração pulava...

— Estás apaixonado...

Os olhos da cigana estalaram-se em direção aos meus e intimidaram-me de todo... que mulher horrível aquela mulher, meu Deus! De repente, com os olhos agora fixos outra vez sobre as linhas da minha mão, ela pareceu alumbrar-se de todo e arrebatada de vez bradou-me irritantemente com a voz aguda:

— A morte!

Deveras, dizia ela como fosse uma bruxa daqueles filmes antigos, daquelas do Mojica Marins.

— A morte é o legado do teu amor...!

Desesperei-me e atalhei-lhe de pronto as palavras, não sei se como espanto ou interrogação:

— Então morrerei!?

— Não! Viverás a morte!

Não sei também se a cigana usou mesmo essa conjugação na segunda pessoa do “tu”, mais própria ao português de Portugal, importa-me, contanto, reviver o horror de sua pronunciação, que assim pareceu-me dar-se agora. Mulher horrível, aquela cigana!

— O teu amor...

Ela quase que fora emendar as derradeiras palavras, quando, num supetão, lancei à sua mão umas moedas e não deixei que continuasse, jamais. Me esperançava que previsse ela a eternidade mística de nossa comunhão, minha e de Lídia, o nosso amor para além da vida. Pensei, confesso, em álamos dourados e unicórnios, paisagens cinematográficas onde corríamos de mãos dadas e tudo o mais... Contudo, percebera que a cigana agourava, ao contrário de meus sonhos, abutres de nossa união, e não a deixaria continuar. Se ela dissesse que este, digo o nosso amor, — “o teu amor”, como ia ela dizer —, se acabaria, (e isso viera a ser a minha interpretação do que dissera sobre a morte: o fim das minhas tênues esperanças), então... eu cometeria o suicídio, não tinha mais nada que esperar. Quereria o inferno!

Dei-lhe assim as moedas, como disse, e me fui. Contudo, praguejado já por aquela cigana aterradora, naquele dia de tolice extrema, ao tomar meu banho, saí dele creio que já em febre. Esmoreci d’imediato. Deveras, esmoreci e não tive mais forças, nem ânimo. Me acometera um mal estranho que alertara o médico sorrateiramente, como toda a Realenzo: dengue, embora da mais tênue, mas que me deixara mais de quinze dias em repouso e isolamento. Por que não me levou embora, essa doença tosca? Eu seria feliz! Caso é que agora se me atrasara tudo... ainda mais!

Contanto, não fora de toda perdida a minha enfermidade, se for pensar, já que na primeira noite de febre Lídia veio me ver. Visitar-me, creio eu. Na segunda, veio novamente e creio também que em todas as noites que tive de delírio; embora imagens, apenas imagens. Me vinha de verde claro e bonito, costumeiramente, a não ser naquela primeira noite, em que ela me veio toda de cinza. Parecia mais estranha do que nunca naquele dia. Parecia não próxima como sempre a senti, mas distante, longínqua, de aspecto sombrio, qual um’alma penada, uma assombração, embora linda, — mais linda que pudesse qualquer ser terreno o ser:

— Um dia... depois destes sonhos, meu amor...

Disse ela. E que doce a voz de Lídia que eu nunca havia ouvido deveras. Delicada.

— Um dia... depois deste mundo, meu amor...

Sim, um dia. Eu sabia que era para um dia, um dia de sonho, um dia diferente de tudo. Ora, eu, um pobre menestrel a cantar o meu amor apaixonado, e ela... nem sua família... levaria como profanação, me veria como intruso louco e jamais me aceitaria, ai, ai, não sei, não sei...

Eu queria poder abraçá-la, à minha doce Lídia, queria poder ficar junto dela sempre, lhe dar todo o meu amor, cantar para niná-la qual menina, — eu a queria, todo criança, como o todo que era meu... E eu queria morrer! Ah, como pedia a Deus a morte! Eu queria, desesperadamente! Contudo, como o destino não é da nossa conta, mas sim da parte de um agouro oculto ou de uma qualquer providência inquestionável, ou de qualquer coisa que não somos nós, eu me curei sem maiores preocupações e, curado, portanto, iria enfim ver minha amada: Lídia.

Certamente, tudo estava como estava, eu pensei, e até meio em desânimo ainda, acometido de alguma sequela da doença que me deixava sempre cabisbaixo. Mas me fui a ver Lídia nem que fosse para matar-me, sim, essa como a última vez! poderia lançar-me às rodas de um automóvel ou cortar-me os pulsos, deixar que minha carne se deteriorasse, qualquer coisa! E, conforme andava, comecei a ficar nervoso, esfregava as mãos uma na outra insistentemente... Não sei que ansiedade louca me tomava. Se Lídia me visse assim não acharia bonito. Jamais. Parei um pouco, tomei uns ares nos pulmões. Começara agora creio a revitalizar melhor. Ah, mas dessa vez, a derradeira! Eu a tomaria nos meus braços — comecei a me dizer — como o seu homem, tivesse eu que escavar o mundo para possuí-la, e eu o faria agora! Senti um calor como a loucura me tomar por dentro. Ai, ai!

Cheguei-lhe, enfim, porém já ao longe espantado. Entrei de súbito o portão adentro, cheio de ânsias, cheio de pressa, na esperança de que meus olhos me iludissem. Aproximando-me, deixei por fim cair as flores e todo o meu mundo ao chão: o túmulo de Lídia havia sido transferido, da mesma forma como o outro à sua frente. Talvez também pelo mesmo motivo, a família, que não vivia mais aqui... E eu não sabia para que cemitério e nem se um dia a encontraria novamente, — minha doce Lídia, que fora levada de mim! A única mulher que amei em vida... e para além de toda a minha vida, a minha vida inteira!

Só que, no túmulo quebrado, entre as tralhas do caixão ruído, deixara-se cair uma lembrança. Um bilhete, do memorial, descuidadamente. E dizia assim:

“Um dia... depois deste mundo... depois destes sonhos... comigo estarás.”

E creio que deixara para mim.