PÁGINA VIRADA *

Ao fechar a porta sabia que era apenas uma via, a saída. Ainda os olhos correram pelo ambiente, mudo, buscando lembranças, despedindo-se com o olhar. Imagens rápidas, desenrodilhando extenso filme, em segundos...

Fizeram daquele pequeno espaço um ninho aconchegante, como dois pássaros felizes, naquele recinto recriaram um universo só deles. Restava uma folha em recado incisivo, lacônico, sinalizando o rompimento, acertado entre eles, como melhor a ambos. Letras pequenas, palavras sincopadas, quase um frio e protocolar recibo de entrega das chaves.

No quarto ainda rescendia, na imaginação, os suores dos corpos entregues e desnudos, após os inúmeros momentos em que se buscaram, nas ânsias dos deleites de pessoas que se querem, se desejam. Naquele silêncio de despedida apenas um recordar rápido, traindo nas saudades o que a realidade cuidou de sufocar.

Como poderia conter, na escassez de poucas linhas, o que representaram um para o outro ? Como apreender em códigos verbais, o que transcendeu em sentimentos, grafados em palavras, desprovidas de emoções ?

Não sabia precisar em que ponto se perderam, na rotina a morte, o desamor? Em qual esquina da existência o amor feneceu, e se esqueceram como amantes, sendo indiferentes moradores do mesmo teto? Sem lágrimas ou rancores, laços desfeitos, esgarçados na poeira da convivência, onde avultam as diferenças. Na verdade não saberiam justificar o distanciamento, de lado a lado, como se renunciassem da relação, desistindo sem lutas. Como tanto vivenciado poderia ser reduzido a quase um bilhete ?

Como haveriam de se ver, em encontros casuais, apenas amigos com uma história de vida em comum, com beijos nas faces? Personagens de um filme vivido a dois, sem reprises, apenas, ao acaso, vagas recordações.

Logo aquele papel seria uma folha amarrotada, descartada do diário de duas vidas, envelhecida, ofuscada, negligenciada, talvez abandonada num cesto de lixo, descartada, ou em alguma gaveta esquecida. Talvez, por acaso, algum dia, ressurgisse despertando lembranças do que foram. Ai, então, nas letras, nas frases incisivas, trariam, atuais, intensas e vivas recordações. Lembranças caras, alegrias vividas, marcantes momentos, sentimentos. Contudo, já separados na fronteira do tempo, em névoas esmaecidas.

Talvez tudo fizesse sentido naquele adeus transcrito, sucinta mensagem, versos cifrados, calando fundo, emoções renascidas em momentos, redemoinhos no sentir, sensações. O presente se distanciando, tornando-se passado, debalde as impressões negando-se ao esquecimento, querendo perpetuar-se, não se perdendo no transcorrer dos tempos, onde tudo vira nada, detalhes.

Se o ideal das palavras conseguisse superar o real dos dias, em redemoinhos no sentir, as sensações do presente permaneceriam, cristalizando o encanto, espantando as adversidades. Pois as escritas enfeitam a vida, infelizmente não mudam o curso das coisas. Como a areia da ampulheta, marcando épocas, não sendo instantes imprecisos, difusos, transitórios, mas a realidade inexorável, contradizendo devaneios, reclamando providências.

Há outros caminhos a percorrer, cada qual no seu destino.

Separavam bem mais que a bagagem física. Relembrariam para sempre aqueles instantes, despertados por qualquer razão. Viriam em uma música, no aroma de um perfume, em uma fotografia, num sorriso desperto em outras faces. Onde tudo se mistura, num mosaico de emoções. Estariam presentes, mesmo na distância. Não se vive impunemente uma paixão. Ela voltaria em noites cálidas, manhãs ou em tardes ensolaradas, ao avistar as ondas do mar, ou chuvas intensas, ressurgiriam do nada, do acaso, rememorados num misto de coisas, reviradas nos baús da existência, seria o ontem no hoje revivido. Apenas isso, reminiscências.

Há estigmas que marcam a alma, cicatrizes não perceptíveis no físico, indeléveis sinais pessoais, sombra nos olhos, tristeza nas expressões, arquivos íntimos, inescrutáveis a terceiros. Marcas que identificam a dor, suavizada no tempo, retemperada nas experiências da jornada.

Com a capacidade humana de se regenerar, como tecido ferido cicatrizado, reagiriam às intempéries. Restariam lembranças mas ressurgiriam em novas tentativas, tudo ficando como acréscimos de entendimentos, aprendizados. Mais aptos aos espinhos e tropeços, tolerantes consigo mesmos e com os outros, vivendo novos amores, amadurecidos.

Dor hoje sufoca, amaina amanhã, esquece depois, no transcorrer dos dias, nas azáfamas das rotinas. Tudo passa. Como as águas correntes, levando seixos e pedras, a correnteza leva. O que resta, no fundo, o tempo desgasta, tudo passa.

Resignado, queria que continuasse consigo os momentos bons, as emoções sinceras. O mais esquecessem, os motivos da ruptura silenciosa, afinal tudo perece, estraga, convém que eles, na somatória das vivências, não se contaminassem, não estragassem o passado bom. Sentimentos contraditórios, quem não os têm? Que os superassem descartando nas lixeiras, afinal, o que não faz bem, faz mal, empaca, espinhos de mágoas. No íntimo, bem além das circunstâncias menos felizes, vale o que sentiram um pelo outro. O mal feito não se muda,não dá jeito. Que mudassem ambos, repaginando, alterando conceitos. Crescimento é permuta, tolerância, cumplicidade. Sentia-se leve naquelas considerações em solilóquios na visita última às quatro paredes que habitara.

Nada que o transcorrer da vida, em constante movimento, não sepulte eventuais dores, ficando, apenas, as boas lições daquele amor acabado, uma página virada para ambos.

* Publicado em livro na antologia O MUNDO NÃO ACABOU, editora CBJE, 2013.