Uma cantada ultrapassada

No meio de uma praça qualquer, senta-se um casal. Bem... não verdadeiramente um casal.

Na verdade, sentaram-se distantes, um homem e uma mulher. Uma mulher muito elegante e bonita, com seus cabelos castanhos a reluzir ao sol matutino e o seu nariz afilado, que podia ser ate mais amorenado do que o resto do corpo, de tão empinado que era. Ela nem olhava para o rapaz ao seu lado.

O rapaz, não tão bem vestido e elegante quanto a moça, ficava a olhar os pombos da praça bicarem os restos de pão e pipoca no chão.

Ele ficou ali olhando os pássaros, até o momento em que viu, de relance, e percebeu aquela moça... ele não percebeu a sua elegância ou seu rosto lindo, ou o seu nariz empinado, mas simplesmente a viu e sentiu algo, não se sabe como.

Começou a inclinar-se um pouco para ela e sentiu uma palavra escapar por entre os seus lábios, como um sussurro, “linda…” disse ele, uma palavra fraca. Nem queria dizer nada e, provavelmente, ela nem escutou. Mas percebendo que realmente tinha dito algo, agora quis falar, falar mais alto, e não só uma palavra, mas várias delas unidas. Ele disse, “ És... de uma beleza raiada. Até agora, nesta manhã de sábado, eu não havia percebido a minha graça de acordar e viver mais um dia. Mas não simplesmente em estar vivo e passar por esse dia, isso é só detalhe. Na verdade, tamanha a minha graça é de ter vivido mais um dia e, neste dia, ter te visto...”

O rapaz a olhava calmamente, sem esperar resposta ou nada.

Mas percebeu que ela havia escutado, por se contorcer um pouco no banco e virar a cara, jogando o cabelo para ele, num gesto rude como se estivesse incomodada. Mas ele não acha aquilo ruim por duas coisas. A primeira é que: ela pode até estar incomodada, mas não havia saído de lá, estava no ponto distante daquele banco, mas, ainda sim, ao lado dele. Ela não saiu. A segunda coisa é que: com o seu movimento de virar a cabeça, ela jogou uma brisa carregada com o perfume que usava. Vento esse que bateu contra o rosto do rapaz carregado do perfume, o fazendo respirar fundo e levemente, ele falou, sorrindo de leve “ Eu percebo que, além de tão linda, também és gentil, porque usas o perfume de outras rosas, de rosas menores, para que eu não sinta o verdadeiro cheiro por baixo desse manto de perfume que usas, e venha a enlouquecer. E escondes o rosto para que eu possa ver que o resto do mundo a minha volta também a lindo, e que pare um pouco de admirar apenas você. Agradeço então por fazeres isso...”

Ela ficou ali parada, mas dessa vez houve um pequeno movimento escondido, como de um espanto reprimido, então... ela finalmente o olhou, mesmo que fraquinho, para o rapaz que ainda a olhava.

Então, figurativamente e literalmente, o espaço entre eles fica menor e sua feição muda para algo que a muito tempo ela nem sabia como era... o seu nariz já não esta mais empinado, porque agora ela abaixa seu rosto para ficar a mesma altura do rosto dele e... O que vem depois nessa clara manhã, de pássaros e flores, não cabe mais a eu falar.

Cadu Guerra
Enviado por Cadu Guerra em 15/05/2011
Reeditado em 17/01/2012
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