A DOR DA AUSÊNCIA *

Antes tê-lo nas desavenças, ao silêncio representado na despedida. Vítima de paradoxos emocionais, a ida definitiva deixava um vazio intolerável. Sua presença , na ausência, doía mais. Muito além que as contrariedades das pequenas questões, do opinar contrariado, de humores estragados, preenchia os espaços, apesar de tudo. Na distância, a dor presente, da presença imaginada, lembrado, impregnado nas paredes, gestos e passos, nítidos, percebidos, poeira dos tempos, momentos passados... Parecendo existir na ausência, como presença invisível, percebida sem ver. Ressentida e doída, na procura vã a lembrada imagem dele distante.

Laura andou pela casa, evasiva, melancólica, afinal, desligara-se dele, definitivamente. Era só questão de tempo, de purgar a memória, de acostumar-se distante, reconstruir os passos, curtir a liberdade tantas vezes anelada, supliciada pela vida a dois.

Não fora como pretendia, mas estava livre. Já não teria o fel a ser sorvido a dois, na solidão conjunta, Seres em mundos paralelos, sem retas convergentes.

O estado civil alterava, nada mais a retinha a ele, oras, por que sofrer ? Tantas vezes desejaram-se ver pelas costas, o que talvez faltasse a ambos era a coragem de sepultarem o insepulto cadáver da relação. Tudo resolvera de forma automática, sem litígios, nem advogados de lado a lado, dividindo os bens materiais amealhados.

Como explicar a si mesma aquela sensação de vazio, de sentir-se inteiramente só, embora sempre se achasse independente, quando estavam juntos ?

Seria a falta que ele estranhamente representava, ou o medo do novo que se apresentava em sua vida ? Questionamentos que não sentia-se capaz de concatenar, racionalizá-los naqueles momentos. Apenas a apatia, o estresse de se sentir desvinculada dele.

Correntes que aprisionam os Seres, dores acostumadas a serem sorvidas entre quatro paredes, sendo a liberdade uma quimera perseguida, quase uma esperança alimentando os dias e justificando as desditas. Algo que se anseia como objetivo, sendo razões para justificativas, nada mais que isso.

Por vezes o queria como um bibelô e mimo, disponível, apreciável a alimentar a convivência, como algo aprazível, desfrutável... As dores do outro, ironicamente eram sabores seus. Nada como tê-lo para achincalhá-lo, o recriminando sempre em suas observações tenazes e irônicas. Cadeias geradas no imaginário das inseguranças, onde o outro torna-se apenas o reflexo das próprias angústias nutridas pela mente dominadora, sendo as vacilações e dúvidas deste, as certezas do domínio, da submissão e da posse. Como se das fraquezas alimentasse as falsas convicções de poder sobre o parceiro. As luzes do outro, trevas e temores do dominador.

Agora, sem ele, sentia-se solta, sem ecos aos reclamos, sem submissão ou consolos. Via-se nua com as suas fragilidades psicológicas, ou falsas verdades. Sim, pois recriminá-lo pelas pequenas faltas a assegurava em suas supostas certezas como a dona da verdade. Naquele jogo neurótico, quem libertava-se de quem ?

A quem direcionar o seu domínio, impor o seu poder ? Laura angustiava-se. A pretendida liberdade era apenas, sempre, uma pretensão, uma justificativa, uma falsa razão construída para si mesma. No íntimo, o queria refém, sob controle de si, de sua impositiva autoridade. Aquilo a fazia forte. Sem ele, sua muleta, sentia-se perdida, estranhamente fraca, sem rumo. Por razões oblíquas de lógica, o submisso, em sua situação, submete aquele que o submete, talvez fosse isso. Rompida a corrente da dominação, o dominador perdia sua referência.

Ele estava distante, inacessível aos seus domínios, enfim, livre, aquilo a incomodava, a quem dizer o quê, ministrando regras, fazendo-se senhora da situação ? Ou mesmo tendo a contrariedade de suas ordens, o que alimentava, de certa forma, aquela confusa relação a dois.

Dele restava o silêncio, apenas a presença pressentida, evocada na memória da parceira que se ressentia de sua ausência, para reafirmar-se em suas inseguranças, nutrindo suas falsas certezas, impondo-se.

Com o tempo, amoldaram-se como partes de um mesmo todo, em dialéticas oposições, dando cada qual sentido ao outro. Sem ele, a bússola estava biruta, sem eixo e nexo. Ninguém poderia perscrutar o que lhe ia em seu íntimo conflituoso, a reclamar a ausência do parceiro como se sentisse a falta de um leme em barco à deriva nos questionamentos. Quem a visse, consternava em piedade, vendo sofrer a morte de alguém querido.

Eis que o pranto emudecido, jaz onde a dor impera, soberba, inteira, encobrindo a luz, amargando espinhos, no ambiente daquela câmara mortuária. A ausência presente, dolorida e desvairada, sem lenitivos, inconsolada. Em lágrimas onde a beleza fenece, pranteando saudades

Enquanto o corpo jazia inerte, venerado, velado, as lágrimas derramadas, ela tinha cúmplices nas dores da perda, no luto e na solidariedade, as mágoas amenizadas. Quando tudo se consumou, despedidas, condolências, ficando solitária em sua rotina, sem ecos aos seus argumentos, a voz monocórdia do interlocutor cessada, nenhuma diferença polemizada, apenas o palco vazio num monólogo enervante.

A inesperada e falsamente ansiada liberdade, rompendo laços, a fazia inteiramente presa e inconsolável, obsediando o falecido, como ambos se fizeram na carne, no dia a dia de suas convivências.

Restaria o consolo do tempo, consumindo, esmaecendo a figura marcante, dissolvendo, sumindo, buscando novos rumos e objetivos, reaprendendo a conviver, esquecendo...

*texto selecionado para figurar na antologia LIVRO DE OURO DO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO, editora CBJE, Rio de Janeiro/RJ, junho 2011.

* SELECIONADO COM UM DOS MELHORES CONTOS PUBLICADOS EM 2011 PELA CBJE, NA ANTOLOGIA PANORAMA LITERÁRIO BRASILEIRO DE 2011.

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