A menina que não tinha sonhos parte II
Virou a página e viu uma foto do pai, era em preto e branco, ele estava em pé ao lado de um cavalo, seu olhar era altivo e soberbo, suas calças boca de sino compunham o visual da época e pareciam deixá-lo mais galante. A história de Henrique também não fora muito pomposa, aliás, o que tinha ele de mais nobre era um nome nobre. Nascera em um distrito da cidade Figueiredo, que de tão longe, só depois de andar quase um dia inteiro e usar um bote em certas partes do caminho era possível chegar lá. Beth disse uma vez, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, que havia um rio no meio do caminho e riu de tudo isso... No distrito havia cinco casas, todas de parentes, Beth fora lá poucas vezes e não chegou a conhecer seus avôs paternos, pois seu pai era bem mais velho do que sua mãe e seus avós já haviam falecido quando ela nasceu.
Henrique era tão falante e contador de estórias que encantavam á muitos, menos á Maria Antonia, mãe de Ana, que era extremamente católica ao contrario de Henrique, um especulador e questionador de tais doutrinas. Ela era contra ao casamento, alias ela nem foi ao casamento, o que deixou Ana profundamente magoada...
Beth se se formou em história e enquanto pensava na vida, foi impossível não compará-la com a vida de Henrique VIII, rei da Inglaterra. Ele rompera relações com o catolicismo, fundando a igreja anglicana, para se separar da esposa e se casar com a plebéia Ana Bolena, mãe da rainha Elisabeth I. Na vida de Beth há semelhanças, com este fato histórico, porem quem rompera com a igreja fora Ana, para se casar com Henrique, um mero plebeu com sonhos de rei... Beth começou até a pensar que seu pai havia lhe dado esse nome de forma proposital...
Beth tinha certa pena da ingênua mãe, achava que de certa forma Henrique iludira Ana com falsas promessas, mas ela acreditava que não fora intencional, acreditava que ele realmente pensava poder dar um castelo a ela, dar um castelo a pessoa que ele escolheu para ser sua princesa... Ana escondeu dele alguns segredos também, escondeu a doença que teve e um hábito que ele abominava, mas que era moda na época, o hábito de fumar.
Beth sentiu-se mal com todas aquelas lembranças, guardou o álbum de fotos na estante junto à coleção de livros do pai. Já era noite, ela Tomou um banho, vestiu seu pijama e foi para o quarto. Deitou-se na cama, e aquela insônia maldita a perturbava novamente, olhando para o teto sem forro, e para as teias de aranhas, começou a questionar sua existência, seus sofrimentos e a vida dolorosa.
Ela morava num casebre de quatro cômodos, a janela do seu quarto dava para a cozinha, os quartos da casa não tinham portas, a pia do banheiro estava quebrada, banheiro tão pequeno que mal cabiam duas pessoas juntas lá dentro... Beth pensou em seu desemprego, lembrou-se de que largara o antigo trabalho de vendedora para fazer estágios da faculdade e agora com curso superior não conseguia emprego em lugar algum... Começou a lamentar aquele dia no qual o medico fez seu parto, pois por pouco não morrera na barriga de sua mãe...
Ana não teve contrações, o neném não se mexia, não teve dilatação, não rompeu a bolsa, e após 18 dias de atraso da data marcada para o nascimento de Beth, Henrique pediu ao médico uma cesárea de urgência. Ela nascera toda roxa, descamando e o doutor disse que ela não agüentaria mais um dia... Beth lembrando-se disso pensou que poderia ter sido um aviso, um aviso de que a vida seria muito dura...
Lembrou-se de quando seu pai trabalhava como imigrante na Inglaterra em busca de bens materiais, enquanto perdia a sua família... Lembrou-se das inúmeras vezes que sua mãe tentara suicídio por achar grande mais a responsabilidade de criar os filhos sozinha... Lembrou-se dos problemas na escola que seu irmão caçula tinha e das noites que ele chamava pelo pai... Pensou em como perdeu sua infância e adolescencia cumprindo em casa um papel que não era dela... Teve de ser o alicerce para que a família não desmoronasse... Teve de abrir mãos de seus sonhos para que seu pai pudesse sonhar um sonho que era só dele...
Depois de tentar dormir, Beth levantou-se da cama foi ate até a conzinha que era do lado externo da casa, tomou seu remédio para dormir... E da janela viu a grande construção inacabada que há quinze anos seu pai vinha construindo... Ficou olhando fixamente para ela e pensou quão grande era a incoerência... Por um instante ela riu de sua própria vida e pensou... Como pode uma pessoa tão perfeccionista e que sonha tão alto, se sujeitar a morar uma vida inteira num casebre para um dia viver num castelo...