A VOLTA

A VOLTA

Thereza Poesia

Seis horas da tarde. Gabriel deveria ter chegado às cinco. O sol já estava adormecido e uma lua branca e grande ameaçava invadir o céu. O fogão exalava um cheiro delicioso do assado preparado por Anília. A mesa posta, com velas e flores, finamente decorada, prenunciava um jantar romântico e a celebração de uma volta.

Anília não conseguia relaxar. Estava linda, com um vestido preto de decote profundo, longo e esvoaçante, calçava sandálias prateadas, o cabelo preso no alto da cabeça, deixava cair mechas de ouro sobre os ombros, num desalinho premeditadamente descuidado. Os olhos verdes de cílios enormes tinham pouca maquiagem, nos lábios, só um pouco de brilho (Gabriel não gostava muito da textura do batom).Ligou o som, colocou uma música romântica , sentou no sofá da sala com uma taça de vinho...por que não liga? Será que o vôo atrasou? Não ia ligar...não ia para não dar a impressão de que estava ansiosa demais, afinal, ele tinha ido embora alegando estar sufocado com o relacionamento ,ele pediu pra conversar, dizendo que estava sentindo muito a falta dela, ele marcara aquele encontro...e ela que continuava apaixonada e sem entender direito a separação, aceitou de pronto. Preparou um jantar especial, um vinho bom como ele gostava, a casa estava perfumada e arejada, e o relógio da sala já marcava seis e trinta...Liga a TV. Vai passar o noticiário local. Será que aconteceu alguma coisa com ele? Nada demais na TV. Somente notícias corriqueiras, corrupção, violência... Nada demais. E o coração acelerado de Anília não poderia mais esperar. Ligou. Uma vez, duas vezes, na terceira vez uma vós de criança atendeu:-Alô?

-Quem está falando?

-Carolina, quem é você?

-De quem é esse telefone?

-do meu pai!

Anília sentiu uma espada gelada atravessar-lhe a alma.

-Posso falar com ele?

-Não, porque nós estamos no aeroporto. Ele foi pegar as malas, o avião atrasou.

-Seu pai é...Gabriel?

-É , você conhece ele?

-Sim. Foi a resposta da moça quase num sussurro e desligou o telefone.

Aos prantos, Anília não conseguia compreender. Dois anos casada com Gabriel, ele nunca tinha mencionado filha nenhuma. Nunca fora visitar ninguém que não a levasse junto, ninguém nunca o procurou e agora aparece uma filha? Como pode ser tão enganada?Quem seria a mãe dessa garota? Ele a teria abandonado para viver com a outra?

Chorou e chorou até perder a noção do tempo e das coisas a seu redor. No fogão o assado esfriara, o colo molhado de lágrimas, a garrafa de vinho secara e toca a campanhinha...

Como um autômato que desperta do transe, abriu a porta...e lá estavam eles.Gabriel, lindo como sempre fora, o mesmo por quem ela havia se apaixonado e uma menininha de mais ou menos dez anos, lourinha, cabelos compridos, usando uma saía xadrez e blusa branca como se fosse uma farda.

-Podemos entrar?

Saiu da frente da porta, ainda desnorteada com a descoberta.Gabriel a abraçou forte, e a beijou no rosto.

-Estava com muita saudade de você.

-Quem é ela?

-Oh, desculpem-me! Eu estava com tanta vontade de te abraçar, que quase esqueço. Esta linda senhorita é Carolina, e se você a aceitar, será nossa filha.

-Filha , Gabriel? Você me deixa porque está sufocado pelo meu amor e volta quando bem quer trazendo uma filha?

-Calma, Anília, vou te contar a verdade porque eu fui embora, não contei antes porque sabia que talvez você não fosse entender e achei que arcaria sozinho com essa responsabilidade. Mas o meu amor por você é maior do que eu imaginava, por isso, viemos aqui, e diante da verdade, implorar seu perdão e pedir que me aceite de volta com a minha filha.Ha onze anos atrás, ainda adolescente, conheci uma jovem que passava férias aqui. Tivemos um breve romance e depois as férias ela foi embora levando no ventre essa menina linda. Eu nunca soube de nada, a não ser há três meses atrás, quando meus pais me entregaram uma carta que havia chegado para o endereço deles, na carta, Lorena(assim se chamava), afirmava ter tido uma filha fruto daquele romance de férias e que nunca me comunicou porque ela sozinha decidiu ter a filha a criá-la. Mas a fatalidade resolveu por ela, vitima de uma enfermidade terminal, escreveu a meus pais,dizendo que estava morrendo, pedindo para que eu fosse buscar Carolina e tomar conta dela, não confiava em mais ninguém.Por isso me afastei de você, temia que não me quisesse mais, tinha providências a tomar. Fizemos o DNA e comprovada a paternidade, pedi a guarda da minha filha que já estava no orfanato depois da morte da mãe. Resolvi que iria ficar com ela, me apaixonei pela minha filhinha assim que a vi, mas o meu amor por você é tanto, que vim procurá-la e pedir seu perdão.

Gabriel falou tudo isso num fôlego só, seus olhos inquietos denunciavam a angústia e a ansiedade pela resposta da mulher amada. Carolina, segurando a maletinha, continuava a fitar os dois, sem entender direito o que passava, mas também com medo de não ser aceita.

-Estou atônita. Não esperava uma filha de dez anos. Deixem eu me recompor. Você é uma linda menina Carolina. Não fique assustada, eu só estou surpresa.Vamos jantar, vocês devem estar cansados da viagem. Vou por outro prato na mesa.

Durante o jantar, só a música suave quebrava o silêncio. Anília fitava a pequena Carolina, que distraída como qualquer criança, saboreava a boa comida. Gabriel quase não comeu, a apreensão falava mais alto. Anília também não conseguia se concentrar na refeição. Os olhinhos azuis de Carolina eram iguaiszinhos aos de Gabriel. O cabelo era louro, deveria ter sido herdado da mãe. Via-se que era uma criança muito bem criada. Era educada e possuía bons modos.

-Obrigada pelo jantar, dona Anília, papai me disse que a senhora era uma mulher muito bonita, mas eu acho que a senhora parece com um anjo.

Os olhos e Anília encheram de lágrimas. Olhava o amor da sua vida, na sua frente, como um menino buscando seu colo e uma criança linda, órfã, que a considerava um anjo...não tinha mais o que pensar:

-Acha que pode me chamar e mãe um dia, Carolina?Sorriu entre as lágrimas.

-Sim...mamãe!Sorriu de volta a bela menininha, enquanto corria e abraçava sua nova mãe. Gabriel, aliviado, deixou que as lágrimas finalmente escorressem por sobre a barba malfeita e juntando as duas num grande abraço, só conseguiu dizer;-Obrigado, meu amor!