Uma Guerra no silêncio

Quando olhei dormias no leito estreito com a cabeça um tanto levantada, posição que tinhas por favorável para ler. Não sei, exatamente, porquê mas pareceu-me ver na tua silhueta a rigidez da morte. Parada, a figura era a tua imagem mais nítida. Os cabelos soltos a contornar as orelhas, a proeminência da boca, o recorte nítido de um perfil que me habituei a amar. Arrepiei-me ante a possibilidade de, à revelia da minha vontade ou do meu conhecimento, ter caído sobre ti, um sono maior e irreversível. Não deverias ter consentido que te tirassem tanto sangue de uma só vez. Bem sei que a vida dela corria risco e que só tu tinhas o grupo sanguíneo compatível mas, ainda assim… não acho certo que, para salvar uma pessoa que tanto te ofendeu, corras tu riscos de vida ou de saúde. Agonia-me ver-te assim, frágil, abatida, pálida, como quem me alerta para uma possibilidade horrível que não quero voltar a encarar.

Algumas vezes tive que defrontar-me com o frio silêncio que invade os corpos e os deixa, rígidos, como se fossem e ao mesmo tempo não fossem gente amada, estátuas de carne nossa por onde a vida, a saúde, o amor e tantos, tantos outros sentimentos percorreram antes daquilo. Não quero perder-te. Não imagino o que faria da vida e de mim se aqui não estivesses. E, contudo, muitas coisas vão, devagarinho, mostrando que essa é uma possibilidade cada vez mais forte. É o tempo a gerir as mudanças e são as mudanças a dizer-nos que há prazos que vão sendo mais curtos. Como se uma inevitabilidade do fim se pudesse ler em coisas breves e simples. Pesada, enorme, bruta e implacável é essa parede, essa zona de nevoeiro denso, esse limite cuja proximidade nos dá a angústia do irreparável, do irreversível, do mistério profundo.

Dormes e vou zelar pela tranquilidade do teu descanso e aguardarei, com ansiedade, a hora em que voltes a abrir os olhos e me dispenses, luminosa e verde, a tua ternura de sempre. Há quanto tempo dividimos a vida? Para mim tudo o que te não inclua é como se nada tivesse a ver comigo. Nasci, cresci, fiz-me gente. Cumpri o serviço militar, estudei. A verdade é que nada disso parece ter qualquer importância. Se tivesse de abdicar de porções de memória, haveria de riscar tudo o que ficou para trás daquele dia em que, vulgar e comum, apareceste. O dia seguinte ainda não foi notável mas o terceiro já me mostrava que vieras para ficar, já te exibia acampada, misturada a mim e presa no meu coração. O dia dois foi de incerteza. Ter-me-ias visto no ângulo certo, na justeza do caminho por onde se mete, em todas as células do corpo, o amor? Olhavas-me e parecias não me ver. Uma inquietação me enchia o peito e me punha febril a fazer por viver a um nível mais intenso. Falar mais alto, olhar mais firme, inchar até que a estatura dobrasse os meus cento e oitenta centímetros. Essa foi a agonia de todo o segundo dia e parte do terceiro em que, a certa altura, sorriste e, por isso, me nasceu o sol, o dia ficou memorável e pouco depois lia, naquele sorriso, a certeza de que, também a ti, eu não fora indiferente. Salto disto para o tempo agreste em que tivemos de largar as nossas vidas, enfrentar o povo, abrir hostilidades com toda a gente. Cortámos com tudo. Tu deixaste o teu marido, eu a noiva de muitos anos e, ambos, renovados e livres, partimos para uma vida em comum que tinha tudo para ser um desastre mas que resultou. De mãos dadas, por entre alas de conterrâneos num silêncio de chumbo, cruzámos a eira e o adro da capela, a rua principal do povoado, os primeiros campos de pão maduro. Sol a pino, calor forte e uma estrada que, longa embora, se ia tornando leve à medida que púnhamos, entre nós e o passado, quilómetros de terra, dezenas de pessoas e a história que tínhamos mas que perdera valor e brilho. Ainda não sabíamos o nome um do outro e já a certeza de que fôramos feitos para ficarmos juntos dominava e nos dava coragem.

Como é ousada, louca e determinada a juventude! Como, no verdor dos anos, deitamos abaixo razões, leis e fronteiras para ser o que, na altura, nos parece ter a força da verdade e o objetivo do destino. Foi assim que enfrentaste o teu marido. - Este homem, Manuel, é aquele a quem, daqui para a frente, quero e vou seguir. Não adiantam mais guerras, pancadas ou ralhos. Já viste que nada disso resulta comigo. Mostrou-mo Deus e sei que não estou enganada. – Disseste-lhe. Fui eu que o impedi de te voltar a agredir. Era a frustração, a honra humilhada, o sentido social a impor-se a tudo, até ao amor que, entretanto, talvez aquele ser tosco tivesse desenvolvido por ti. E admirei a tua força, a tua decisão e, sobretudo, a coragem de enfrentá-lo e a todos com uma certeza digna de nota. Leve tarefa era amar-te mas, a partir daí, jurei a mim próprio que dedicaria a vida a tentar fazer-te feliz. Nunca sei se consegui e, a este respeito, só se ameniza o meu coração quando olho e tu estás no teu posto, ao meu lado, amável, decidida, amorosa.

A luta pela vida foi dura mas juntos não sentimos tanto. Apesar de não termos filhos nunca estivemos sós. Tinhamo-nos um ao outro e aquele fogo que nos atraía sempre, que nos fazia sensuais em todos os muitos dias da nossa já longa vida em comum. Comigo foi muito mais fácil deixar a Augusta, moça leviana e sem grandes preocupações. Oficialmente estávamos noivos mas há anos dormíamos juntos com a conivência das nossas famílias e o aval do povo. Pesa tudo no nosso destino aldeão a aprovação do povo. Sabiam-na viúva, jovem, fogosa e eu era bem a forma do seu pé. O pior era a indiferença que ela tinha para com tudo o que me interessava. Trabalho ou lazer, as aspirações e esforços, nada parecia dizer-lhe respeito. Era como se eu mais não fosse que uma inevitabilidade da sua vida. Já não podia escolher, havia-me dito certa vez, e, portanto, eu ou outro tanto fazia. Andava alheia mas sentia-se bem na mediocridade da vida que tinha. De certo modo eu também me acostumara a não ter devaneios e a afastar os sonhos que achava já não serem compatíveis com os trinta pesados anos de campo. Até ao dia em que apareceste. Vinhas de Braga para o funeral do teu padrinho e ficaste na casa que te deixou, pobre e em ruínas, ali plantada no campo de trigo, com as bestas para cuidar. Após o enterro, deitaste mãos à obra para tentar firmar raízes no teu novo chão. Não estava previsto que eu te mudasse os planos, que o pessoal nos movesse uma perseguição feroz, que tivesses de por à venda tudo e, de um para outro dia, determinada, altiva, seguir viagem a pé até ao limite do Conselho de mão dada comigo. Na altura confessavas que não havia lugar para hesitação, medo, ou insegurança. Era eu o cobarde, o frágil, o que ainda ponderava nos contras apesar de ter uma certeza incrível de te amar. Eras tudo para mim. Caminho, destino, razão. Exatamente como agora, embora estes anos todos nos molengassem os corpos e a nossa vida se tivesse organizado numa serenidade impensável quando nos juntámos.

Quando o teu marido morreu voltámos para tomares posse da terra e da casa que, como uma insuspeitável prova de amor, ele te deixou. Sem outros herdeiros e sem filhos, aceitar era quase uma obrigação à memória de quem nunca deixara de, à sua maneira, de gostar de ti. Voltámos a sofrer porque nos fechavam as portas e cerravam as portadas das janelas quando passávamos. Parecia que o tempo regredia para os dias mais hostis. Olhavam-nos e cuspiam, negavam a saudação, rosnavam imprecações e anátemas que nos faziam empalidecer e apertar ainda mais as mãos um do outro. Era unidos que voltávamos a enfrentar os habitantes da terra. Decidir casar ali foi uma espécie de resposta, um desafio. Entrámos no cartório perto do meio-dia com duas testemunhas arregimentadas na feira. Estavas linda na tua saia rodada, no avental bordado, no lenço colorido, no molho de espigas e margaridas que levavas mas, sobretudo, no fresco ar de felicidade que ninguém mais poderia perturbar. Éramos um do outro e, agora, também à face da Lei. De Deus não cuidávamos que ambos sabíamos que nos abençoava tão certos nos achávamos no nosso querer.

O ostracismo, no entanto, persistiu. Fazias questão de olhar as pessoas de frente, cabeça erguida, quase altiva, mas eras afetuosa mesmo para quem usava de grosseria. Só a teimosia das gentes as levava a este tipo de comportamento em tudo estranho e nós fazíamos por ignorar os agravos e ter atitudes exemplares de solidariedade e de compaixão, que, no entanto, nem pontualmente alteravam a animosidade geral. Foi então que, naquele inverno, derrapando na neve, a carrinha da Casa do Povo se espatifou junto à curva do açude e oito pessoas ficaram feridas com alguma gravidade tendo a Teresa perdido muito sangue o que a deixou à beira da morte. Sem outros recursos para além dos rudimentares e sem transporte para Bragança, em breve toda a gente procurava por alguém que tivesse sangue compatível para a transfusão urgente que se impunha. E, por ironia, só tu, a proscrita, tinhas nas veias a salvação da velha Teresa, a mulher que liderava a hostilidade contra ti lá, na aldeia. Sem que precisassem pedir-te logo unias o teu braço ao da moribunda para a transfusão direta, abundante. Teresa recuperava a vida e tu, debilitada e pálida, recolhias a casa ante o silêncio respeitoso de quem tudo presenciara.

Ainda nesse dia a filha de Teresa haveria de trazer a ceira com pão acabado de fazer, para te recompores, dissera. Era uma mulher ainda jovem, bonita, com o ar agressivo da mãe mas de falas mansas. Entrou, aceitou o banco perto do lume e ali ficou olhando-nos como se lhe custasse a crer no que via. Quem diria que alguma vez eu entraria em vossa casa, disse. Quem diria que, depois de tanta guerra inútil, as pessoas tivessem precisado de sentir perto a morte para perceber que o tempo que temos deve ser gasto para construir a harmonia e não as divisões em que se perdem afetos e se ganham amarguras. Perdoem-nos a ignorância. Viver aqui embrutece-nos, liga-nos ao destino comum e nunca aceitamos que alguém de fora nos mostre, como vocês fizeram, com fibra e verdade, as alternativas ao desespero com que muitos de nós se deixam sepultar em vida, à margem da ternura e da paixão, no avesso do amor. E vocês rebelaram-se, enfrentaram o povo, venceram quando foram embora e venceram no vosso regresso. Depois disto a aldeia não voltará a ser a mesma e é disso que quero falar e é isso, mais que a salvação da minha mãe, que venho agradecer.

Ouvias, sonolenta, as palavras da moça e, gradualmente, como quem desperta de um profundo sono, mostraste um sorriso débil e abriste para nós, para a vida, os teus olhos emocionados, aquosamente verdes.

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 27/04/2011
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