O AMOR FÍSICO E O AMOR ESPIRITUAL

Nascera de uma família tradicional, criadora de gado, tanto para o abate como para tirar leite, além de grandes culturas de cana de açúcar para fazer açúcar e a melhor cachaça do estado. Nas outras fazendas plantavam café, que era colhido só os de grãos vermelhos e ainda para não sujar, colhiam em cima de um pano. Filha única. Os pais se desdobravam em mimos e cuidados. Mas já de menina dava demonstração de ser uma criatura de quietude e serena por demais. Suas brincadeiras além das bonecas, casinhas, chás imagináveis, gostava muito de tomar banho de rio e pescar lambaris. Na sua coleção de armadilhas para pescar lambaris havia desde covos feitos de arame até os litros brancos de cinco litros, especialmente preparados com um furo na parte côncava do garrafão, por onde entravam os lambaris em busca do farelo de milho, estrategicamente disposto. Pescava com vara leve fina e com anzol fininho, usava como isca, uma mistura de trigo, ovo e feijão amassado. E dava certo.

Cresceu. Primeira comunhão. Primeira menstruação. Não tinha namorado. Baile de quinze anos. Estudava mais de 10 horas por dia. Estudos do segundo grau concluídos. Beirava os 16 anos. Surpresa familiar. Vou estudar Direito. Liga para a madrinha na cidade grande. Como? Outro curso? Preparatório pro quê? Nunca ouvi falar desta pasmaceira. Atende a sua madrinha. Não. Vou fazer exame direto. A madrinha que me inscreva ns três faculdades de Direito. Vou prestar exames nas três. Mas e curso preparatório? Estudei o suficiente.

Motorista cuidadoso. A mãe poucas vezes estivera na cidade grande. A empregada que vira a menina nascer foi junto. E então começou a maratona dos exames. Três faculdades e graças à Deus com exames em datas separadas por uns quatro dias entre uma e outra. Permanência na cidade grande, dezoito dias. Resultado esperado. A mãe nunca rezara tanto. Já madrinha acendia velas. A empregada se encantara com cidade e aproveitava para passear com o motorista. Até que em uma noite a tentação do motorista e umas cervejas a mais, perdeu a dita virgindade de uns 38 anos. Que esforço do motorista...

E então saíram os resultados. Passou nas três. Em duas em primeiro lugar. Em uma também em primeiro lugar, só que com a mesma nota de outro vestibulando.

Matricula feita, na melhor faculdade. Morar com a madrinha? Não. Obrigado. Mas.. Não tem mais e nem menos.Já pesquisei. Vou morar em um Flat. Num o quê? Em um Flat, administrado por uma congregação de irmãs religiosas. Só para sexo feminino. Vamos ver. Benção irmã. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo. Para sempre seja louvado.

O tal Flat era um apartamento, no entender da mãe. Muito mais que isto. Quanto custo por ano? Pagamento à vista? Sim. E por ...?. Quantos anos é este teu curso? Cinco. Quanto custa para pagar por cinco anos a vista? A freira quase que engole a dentadura.

Vamos fazer o seguinte. A senhora paga um ano adiantado e o desconto é de 18%. Amanhã nós assinamos o contrato. Que tal às nove horas? Contrato assinado. Pagamento feito em espécie. A freira se atrapalhava para contar aquele monte de dinheiro.

Minha filha, que alegria. Agora vamos ter uma dotora adevogada. A primeira dotora na família. Últimos banhos de rio. Ultimas pescarias de lambaris e últimas fritadas em banha quente de lambaris enfarinhados.

Mais uma viagem para a cidade grande. Que tipo de carro que você quer? Nenhum. E para ir para a escola? Que escola pai? Para a faculdade. È isto mesmo. Vai de a pé? Vou. Dista só três quadras do Flat. Problema resolvido. Mas temos ainda uma coisa a tratar.O que filha? A venda das minhas novilhas nelore e da boiada, lá da fazenda Cabocla Sarará. Não se preocupe. Dinheiro não faltará. Mais dia, menos dia isto tudo será seu. Despedida. Lágrimas contidas do velho pai. Soluços da mãe. E a empregada ficou na fazenda com o motorista e....

Primeiro dia de aula. Relação de livros. Horários das aulas. Desencontrados. Mas todos no mesmo prédio. Livrarias poucas, mas completas, todas perto da faculdade. Relação de livros para o Primeiro e Segundo Período. Pesquisando os livros, com a lista em uma das mãos, estava totalmente dedicada ao assunto. Um livro aqui, outro ali. A lista estava se completando. Uma dúvida. Qual o autor a escolher? Direito Privado. Uma voz se fez ouvir. Com licença. Em termos de Direito Privado posso lhe aconselhar? Não obrigada. Insisto. Por favor, o senhor está sendo inconveniente. Aqui está o meu cartão. E saiu com elegância. Não se deu o trabalho de ler o cartão. Aulas em andamento. Sala praticamente lotada. Primeiras aulas a respeito de Teoria Geral do Direito Privado. Quem entra na sala? Adivinhou? O próprio. Queria morrer de vergonha. E agora? Homem elegante. Alto. Cabelos ondulados. Barba muito bem feita. Terno cortado sob medida. Sapatos brilhando. Voz calma e clara. A aula foi como que um lenitivo. E veio então o que se esperava. A auto apresentação dos alunos. E a temida vez chegou. Levantou-se rápida, falou mais rápido e sentou mais rápido ainda. Desculpe. Não entendi bem o seu nome. Por favor, repita-o. Assim o fez, morrendo de vergonha e mais vermelha que pó de colorau. Algumas semanas se passaram. Já existia como era de se esperar um entrosamento entre os alunos e os professores. Por favor. A senhorita poderia depois da aula, ir à minha sala? Que mico. Agora não tinha com escapar. Bateu delicadamente à porta. Por favor, entre. E então já escolheu o autor do livro? Fique tranqüila. A minha intenção é de selecionar alunos para assistentes das minhas matérias. E assim foi florescendo uma amizade, eivada de sentimentos do tipo admiração e idolatria. Era a personalidade em forma mais caracterizada de um homem, de gestos e fala calma, de atitudes pensadas e equilibradas. No seu modo de vestir já havia um sinal que indicava a sua forma de ser e existir. Sapatos brilhantes, barba bem escanhoada, cabelos ondulados, com alguns fios prateados. Enfim era a composição perfeita de mestre, orientador, amigo e quem sabe, poderia um dia ser algo mais. Na sala ou como costumava dizer, no cenáculo acadêmico, a simplicidade era a tônica geral. Uma mesa no centro da sala, com oito cadeiras. Tampão de mogno que combinavam com as cadeiras, forradas em couro. Na sua mesa de trabalho, nada mais que uma fotografia. Por sinal diferente. Um perfil de mulher. Chamava a atenção a sua beleza. Um bloco de notas e uma caneta Parker 21. Não resistiu a tentação, uma vez que estava só na sala, nas mãos a fotografia emoldurada. Não contava com o imprevisto. E então? Gostou da foto? Linda não? Sim. Muito linda. Sua esposa? Não. Minha noiva. Decepção. Um obstáculo que não contava se houvesse alguma pretensão amorosa futura. Infelizmente morreu. Silêncio. Nos conhecemos quando ainda estudantes secundários. Ingressamos na mesma faculdade e no mesmo curso. Da mesma turma. Nos formamos. E sempre nos amamos de forma pura e intensa. Nunca houve um contato carnal. Havíamos nos prometido que casaríamos virgens. Mas no dia no nosso noivado, após o almoço, estávamos com todos os familiares reunidos, na varanda da casa da fazenda dos meus pais, ela deitou a cabeça no meu colo e ali ficou. Um suspiro longo e demorado. Dormiu para sempre. Uma fatalidade que até hoje não consegui superar. Um trauma enorme. Mas o senhor, não teve mais nenhuma namorada? Não. O meu único e eterno amor sempre será ela. Não dou espaço para ninguém. Espero encontra-la em outro plano. Outro plano? Sim no plano espiritual. Se fisicamente nos guardamos, espiritualmente nos completaremos.

Voltou para o flat. Pensativa e intrigada. Que desperdício de homem. Homem deste feitio não se faz mais. Banho tomado. Cama aconchegante. Na mesa de cabeceira uma lâmpada, um bloco de notas, uma caneta e o celular. Adormeceu. Sono tranqüilo. Acordou para saber das horas. Aquela manhã não teria aulas. Acendeu a luminária e. Deu um salto na cama. O bloco e a caneta não estavam ali. No seu lugar várias folhas de papel escrita à lápis, e lógico um lápis. Iluminou o recinto e tremendo sentou-se com mais conforto na cama, com as folhas, onde havia algo escrito, com uma caligrafia linda, harmônica, suave e elegante. O texto era legível, se bem que a apresentação do texto dava a nítida idéia de uma mensagem, que dizia: “Minha caríssima irmã em Jesus Cristo. Que as bênçãos celestiais se façam presentes no seu coração. Falo a você a respeito do amor. O amor é um sentimento de difícil definição. Mas posso expressar um exemplo do que é o amor maior. O amor que o Cristo nos deu. São inúmeros exemplos, como o amor pelo amigo Lázaro, do amor ao cego, do amor ao perdoar os pecados de Maria Madalena, do amor aos seus seguidores ao saciá-los com os pães e peixes que multiplicou. O amor pela Luz ao resistir às tentações no deserto, que caso não as resistisse estaríamos em um mundo de trevas. No amor supremo ao ser crucificado pelos nossos pecados e reatando a Aliança da humanidade com Deus Pai. E finalmente a prova do amor, que ao ressuscitar veio de encontro aos seus seguidores, dando-lhes a certeza da vida eterna. Mas o amor ainda tem suas nuances e formas. É o caso do nosso irmão que ainda nutre o amor pela sua noiva desencarnada. Ele crê piamente que um dia quando chegar a sua hora, irá encontrá-la para selar este amor que não foi possível vive-lo no plano físico, mas sim que irá desfrutá-lo no plano espiritual, com as bênçãos celestes. Caríssima irmã. A vida é feita de lutas, de avanços, de retrocessos, de glórias, de desilusões e de esperanças. Ingredientes que ajudam a moldar nossos espíritos, quando da nossa passagem por esta vida terrena. A juventude que você hoje desfruta, na sua plenitude e energia, deverá ser abençoada e iluminada. A busca pelo amor, muitas vezes é de difícil compreensão e entendimento e quando não somos aceitos, um sentimento de pesar, desilusão e até de raiva toma conta da nossa existência. Não magoe o seu coração, não se exponha a dor de um amor que poderá não ser correspondido. Busque no Evangelho Segundo o Espiritismo as mensagens a respeito do amor: “O amor resume toda a doutrina de Jesus, porque é o sentimento por excelência, e os sentimentos são os instintos elevados à altura do progresso realizado. No seu ponto de partida, o homem só tem instintos; mais avançado e corrompido, só tem sensações; mais instruído e purificado, tem sentimentos; e o amor é o requinte do sentimento. Não o amor no sentido vulgar do termo, mas esse sol interior, que reúne e condensa em seu foco ardente todas as aspirações e todas as revelações sobre-humanas. A lei do amor substitui a personalidade pela fusão dos seres e extingue as misérias sociais. Feliz aquele que, sobrelevando-se à humanidade, ama com imenso amor os seus irmãos em sofrimento! Feliz aquele que ama, porque não conhece as angústias da alma, nem as do corpo! Seus pés são leves, e ele vive como transportado fora de si mesmo. Quando Jesus pronunciou essa palavra divina, — amor — fez estremecerem os povos, e os mártires, ébrios de esperança, desceram ao circo”.

Aceite o meu fraternal abraço espiritual e que as bênçãos do Nazareno se façam presentes na sua vida. Nosso beijo. Elyzabeth.

Ficou a pensar qual era o sentido da mensagem. Um tanto perturbada levantou-se, um banho gelado. Um lanche reconfortante. Aquela tarde, após as aulas haveria a reunião semanal dos assistentes. Terminada a reunião, esperou todos os colegas saírem e aproveitou o momento, para iniciar uma conversa a respeito de vidas passadas. O que de fato deixou o Orientador um pouco confuso. E então lhe entregou as folhas escritas à mão e com lápis. Aos poucos as lágrimas escorriam pela face. Lia as palavras, como quem sorvesse um copo de água fresca, após atravessar um deserto. Releu agora, com mais calma. Parava, enxugava as lágrimas e por fim indagou. De onde surgiu este escrito?

Relatou o acontecido. E por fim abriu uma gaveta de onde tirou uma pequena caixa de madeira, toda emoldurada, onde se encontravam vários envelopes. Abriu vários. Comparou a escrita, as letras, à forma elegante e suave da caligrafia. E a maneira como terminavam todas as cartas de amor: Nosso beijo. Elyzabeth.

Não restava dúvida era uma mensagem da sua amada.

A partir de então, cresceram ainda mais os sentimentos de amizade, de carinho e de respeito.

Passaram-se cinco anos. A formatura, o diploma. As provas junto a OAB. A aprovação.

Escritório na cidade grande. O celular indicava que existia uma ligação não atendida.

Retornou a ligação. Não era número conhecido.

Morrera. Solitário na sua sala que costumava chamar de cenáculo acadêmico. Nas mãos a mensagem da sua amada Elysabeth.

E então compreendeu as palavras do Cristo “Será então que, compreendendo a lei do amor, que une a todos os seres, nela buscareis os suaves prazeres da alma, que são o prelúdio das alegrias celestes”.

ROMÃO MIRANDA VIDAL
Enviado por ROMÃO MIRANDA VIDAL em 24/04/2011
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