Conturbação Contínua

Era sempre estranho acordar e se dar conta de que os corpos estavam unidos. Na grande maioria das vezes acontecia quando nos mandávamos à puta que o pariu e pegávamos no sono cheios da cólera parcialmente extravasada e do tesão reprimido.

Terminamos a coisa toda e logo baixou uma nuvem negra no quarto: o faiscar de alguma reminiscência da briga mal-resolvida da noite anterior.

Ela sentia prazer em encher a sacola e elevar uma coisa mínima a patamares extremos enquanto eu não tinha lá muita paciência pra ficar discutindo uma relação fantasma; eu era um solitário e dormir no apartamento dela quatro vezes por semana já era uma concessão e tanto. Discutir minimalidades parecia sugar meu esperma e eu precisava deles; ela também precisava e, no entanto, parecia não se importar...

Começou a me dar beliscões e tapinhas e a me chamar de chato, fazendo de tudo pra eu dar a deixa e penetrarmos novamente na troca de ofensas.

Virei pro lado e dormi.

Acordei dali umas duas horas com ela sentando nos meus pés e reclamando da minha folga ao ocupar o espaço da cama em que ela depositava o rabo pra enxugar os pés ou coçar frieiras.

“Mas você é chata pra caralho, hein? Deusolivre!”, resmunguei.

“Vai, levanta logo pra gente ir almoçar com o pessoal”.

“Qual pessoal?”, eu perguntei.

“O Beto, a Tá, A Laura...”

Rolei pro lado e alguns flatos pipocaram pela retaguarda.

“Não tenho condições de outro almoço com vocês na Galinha Mágica; sou pobre, caraio!”.

“Eu pago metade da sua parte, pode ser?”

Ela falava comigo enquanto espremia um tubo de creme nas mãos e depois passava pelo corpo todo.

Fiz um charminho, mas acabei aceitando. Minha performance era infinitamente melhor depois de bem alimentado e a safada devassa filha da puta sabia disso, amava isso, vivia disso...

Tasquei-lhe uma mordida na bunda e fui pro chuveiro e fiquei lá, me ensaboando, olhando aquelas calcinhas penduradas, tentando mensurar a imensidão da minha falta de ambição, me perguntando quando conseguiria ter uma vida razoavelmente aceitável e também o porquê dela gostar de alguém assim. Eu sempre acabava chegando à conclusão que ganharia numa loteria mais cedo ou mais tarde e que tais ponderações sobre sucesso na vida e tudo o mais eram coisas de gente sonsa e insegura. Portanto, com o corpo e com a consciência devidamente limpos, me enxuguei, coloquei a mesma cueca amarelada na parte da virilha de tanto uso, enrolei a toalha na cintura, e, no caminho até o quarto, dei de cara com uma belezinha mineira de nome Eduarda (?) que dividia o apartamento com a minha garota (e com uma terceira garota também). Ela passou direto por mim, me ignorando como sempre... Ocorreu-me que se eu não fosse tão complexado com o tamanho do meu atributo mole, teria aberto a toalha na cara dela e começado a chacoalhá-lo, só pra ela ficar esperta e parar de ser esnobe.

Eu tinha fome. Muita fome. E a capacidade de ficar demasiadamente intratável quando faminto. Eu tentei comer alguma coisinha após o banho, mas ela me podou.

“Eles já estão chegando, sossega!” - foram suas palavras.

Daí aconteceu de ficarmos por duas horas olhando um pra cara do outro esperando os bonitões chegarem. Tocaram a campainha e eu fui abrir a porta. Beto era gente boa; rapaz bem apessoado com o corpo coberto de tatuagens. Tá era sua garota e Laura, sua irmã.

Cumprimentei-os e todos fomos pra sala. Logo começou a rolar uma dischavação regada a muita conversa mole que me causava desinteresse, além de arraigar o meu complexo de inferioridade. O cigarrinho começou a rolar solto e todos ficaram logo devidamente chapados – menos eu, que não era muito fã do troço.

Entramos todos os cinco no carro importado e blindado e do ano do Beto e fomos até a Galinha Mágica. Lugar com fila de espera; só gente bonita e educada com o peculiar perfume do dinheiro.

Eles conversavam. Falavam de passado, de presente, de futuro. De primos, de primas. Beto era primo da minha garota. Falavam de avós em comum, de passeios em Floripa, de viagens à Europa e toda a gama possível de coisas que fugiam à minha realidade. Como eu não tinha muito o que falar, continuei devorando o arroz com brócolis que custava o olho da cara e mordiscando uns nacos de frango frito.

De lá, seguimos empanzinados e mais pobres (puro eufemismo, no caso deles) até o apartamento do Beto. Bairro tradicional e chique da Zona Oeste e tudo. Eu gostava do saguão do prédio: havia uma reprodução do Starry Night lá.

“Esse quadro é demais, né, Rafa?”

“É, Beto... SE é!”

“Muito me impressiona que alguém que se suicidou conseguiu enxergar o céu de uma forma tão singular, cara... Não dá pra entender!”

“Ééééé...”, eu grunhi.

Eu gostava dele. Era filho de um dos caras mais ricos da cidade e não era nem um pouco fresco. Nem um pouco mesmo.

Enrolaram outro e desta vez eu acabei indo parar no lavabo minúsculo com ele. Fizemos uma pequena sauna conversando sobre Zumbis do Espaço e Dinosaur Jr.

O troço bateu e eu comecei a ter vertigens jogando Motorstorm e a ficar de mau humor. Decidimos ir embora pra nossa casinha. Pra casinha dela. Ela insistia em esquecer que não era eu quem dividia as contas com ela quando dizia que era “nossa casinha”.

Chegamos e ela foi direto pro banheiro resolver suas coisas e tomar banho. Aproveitei pra mexer no celular dela e fiquei tentado a invadir o banheiro com uma faca na mão e perfurá-la quatrocentas vezes, mas acabei deixando o celular da mesma forma que estava e fiquei remoendo o ódio. Ela entrou no quarto e eu passei direto e fui pro banheiro resolver as minhas coisas e tomar banho. Quando eu abri a porta do quarto novamente um copo se espatifou na parede ao meu lado.

“Você ainda fala com essa vagabunda?”

“Que vagabunda? Tá louca?”

“Aquela loira vaca dos olhos azuis”

“Nem falo mais com ela, cacete. Ficou louca?”

“Então como você me explica essa mensagem aqui, hein?”

Li a mensagem: “Saudades do melhor abraço do mundo =)”

Tinha acabado de chegar, inclusive.

“Mas é ELA falando COMIGO, e não EU com ELA”, tentei me safar. Mas era verdade.

“Você mente, velho...”

“Mas, convenhamos que você não tem moral nenhuma pra dar chilique, não é, lindona?”

“Como assim?”

“Fiquei sabendo do seu feriado prolongado lá na ‘casa da sua mãe’ – com o seu EX”, e caprichei no EX, pois eu não sabia se eu era um amante.

Ela hesitou por alguns segundos e em seguida veio o de sempre:

“Por que você mexe no meu celular? Mas que PORRA!”

Desta vez eu troquei de cueca. Deitei do meu lado da cama enquanto ela continuava falando. Acabei adormecendo.

Na manhã seguinte acordamos com os corpos unidos. Não dava pra entender...

18/04/2011 - 18h33m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 18/04/2011
Código do texto: T2916763
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