O Bornal de Palha de arroz
O bornal de palha de arroz
Ainda era começo do ano de 1823. Tentáculos imperiais espalhavam-se pelos quatro cantos da terra, impulsionados pelos ventos, pela força do vapor e por uma revolução nos modos de produção. Porém, continuavam velhos os modos de ver o mundo. A efervescência econômica comandava ações que não mediam conseqüências em busca de um futuro perseguido incondicionalmente. Os mais longínquos cantos da Terra eram visitados em busca de comércio, de lucros e de mão de obra barata.
Do convés do grande e moderno navio com velas enfunadas que se afastava aos poucos do porto de Xangai, Chi Miung Lee ainda conseguia distinguir os cabelos longos, negros e brilhantes de sua jovem esposa agitando-se ao vento forte enquanto acenava na borda do cais. Seus olhos estavam marejados pela emoção da partida, assim como os dela, embora ele não pudesse ver. A viagem seria longa e penosa para aquele jovem chinês de pouco mais de vinte anos de idade, mas o pequeno bornal de palha de arroz, hábil e carinhosamente tecido pelas mãos da doce Chiing Mii, cheio de folhas de chá verde, o manteriam próximo das coisas de que gostava. Partir para uma terra estranha e tão distante que não aparecia em nenhum dos poucos mapas que conhecera, era um desafio enorme, quase tão grande quanto o de aplacar a dor que sentia no peito por deixar para trás sua esposa, seus pais e irmãos e sua terra querida. Mas, mesmo com todos os perigos aumentados pelo temor do desconhecido, Miung Lee sabia que tinha que tentar. As monções de verão que sempre foram aliadas de seu povo proporcionando colheitas de arroz que garantiam a sustento de sua família à gerações, foram particularmente fortes nos últimos anos. Os campos de arroz não conseguiam produzir o alimento necessário. A fome começava a assombrar os camponeses que acabavam por abandonar suas terras e partir para as cidades em condições desfavoráveis. Os imperadores pareciam ter chegado no momento exato. Lee e outros companheiros de jornada costumavam se referir deste modo quando falavam de seus anfitriões. Não sabiam direito onde ficava a tal de Inglaterra, mas percebiam algo da pompa do imperador chinês da dinastia Qing no modo de agir e de ser de cada um dos altos, muito brancos e empertigados marinheiros ingleses. Faziam chacota e riam, de modo comedido, em suas rodas de conversa em meio ao chá verde que preparavam e sorviam com perfeição ritual e que os aproximava da terra que a cada dia ficava mais longe. Foram dias difíceis. Alimentação rasa e desconhecida, acomodações apertadas em ambiente de pouca ventilação nos porões inferiores começavam a fazer vítimas. Lee perdeu alguns amigos durante a viagem. Mas a espera e o sacrifício estavam por terminar. Eles tinham ouvido maravilhas, ditas por chineses contratados por ingleses, sobre a terra da oportunidade que estavam prestes a conhecer. A lembrança dos cabelos longos, dos olhos negros, profundos e doces de Chiing Mii, tinham ajudado aquele jovem chinês da província de Xhiau a suportar os dias difíceis nos mares bravios. Enfim, o majestoso HMS Endurance entrava pelo Tâmisa apresentando à sua carga viva as maravilhas da capital do mundo. As docas estavam a poucos metros e tomadas por uma pequena multidão agitada que se movia para todos os lados sem dar muita importância aos recém chegados. Nada havia de comum naquele lugar aos olhos do jovem Lee. A ponte de Westminster, armazéns do cais, pequenos edifícios e construções diversas evidenciavam a distância enorme que o separava de seu real lugar. A passagem pelo serviço de imigração foi o que se poderia chamar de confusão organizada. Um emaranhado de gente junto a guichês improvisados tentava deixar os dados exigidos nos registros oficiais para poder entrar no país. Assim que os viajantes passavam pela porta dos fundos do grande armazém que servia aos atos notariais, estavam, de fato, na terra da oportunidade e por sua conta. Lee se sentia perdido, mas a avalanche de novidades que se apresentava diante de seus olhos curiosos nublavam o seu sentimento. O dia estava cinzento e uma chuva fininha e fria caia por sobre a metrópole. Chi Miung Lee apertava seu pequeno bornal de palha de arroz quase que sem perceber. Ele e mais dois amigos vagaram pelas ruas majestosas do centro comercial de Londres inebriados pelas novidades ignorando o perigo da noite que se aproximava. Não sabiam para onde ir. Não conseguiam informações. Não entendiam a língua estranha dos donos da terra, que os olhavam com ares desconfiados e distância imperial. A primeira noite foi dolorosa. Amontoados em um beco descoberto, por sorte, entre duas pequenas ruas já um pouco distante das casas bonitas, eles dormiram molhados, sujos e com frio. Nem o chá puderam preparar. Em algum lugar no passado, Lee tinha ouvido que Londres era a terra do chá e isto lhe trazia algum conforto. Mas sua primeira noite foi sem chá, sem alimento, com fome. O dia surgiu sem sol. Cansados, doloridos e com os estômagos vazios, Lee e seus amigos conseguiram, por fim, informações com um outro imigrante chinês que vivia na cidade já há dois anos. Receberam a indicação de um lugar para ficar e onde encontrar trabalho. Foi uma longa caminhada. Os coches luxuosos dos senhores ingleses da área mais central da cidade tinham dado lugar a pequenas carroças toscas puxadas por cavalos magros. A chuva fina parecia não dar sinais de trégua e mantinha Lee e seus amigos encharcados. Aquela terra parecia mesmo não ter sol. Algumas horas de caminhada penosa entre ruas cheias de lama e finalmente chegaram a EastTown, próximo a Whitechapel, na freguesia de Tower Hamlets. Realmente havia trabalho por lá. Indústrias pouco mais que artesanais contratavam os pobres imigrantes por umas poucas moedas por dia. Ao final de uma jornada de quatorze horas de trabalho cansativo em frente a uma mesa de desossa de carcaças sujas de animais diversos, Chi Miung Lee e seus amigos receberam um xelim de prata como pagamento e a indicação de onde poderiam passar a noite. A pensão não ficava muito longe. Uns poucos minutos de caminhada por entre ruelas escuras divididas com prostitutas, bêbados e punguistas, afundando os pés numa lama mole e pegajosa formada por terra encharcada e excrementos diluídos pela umidade constante, e estavam diante da pensão dos recém chegados. Dois peni pagavam o pernoite. Quartos sem iluminação, imundos e fétidos eram ocupados por quase vinte pessoas jogadas sobre colchões de palha mofada. Nem lugar para cozinhar o pedaço de carne enegrecida que conseguiram comprar havia naquele lugar. O chá teria que esperar. Lee, nos poucos momentos em que conseguia dormir, sonhava com sua terra. Via claramente o rosto de sua jovem esposa com o mesmo sorriso acanhado que o cativara nas reuniões de celebração da colheita do arroz. Porém, o sonho era tão breve quanto o sono e a realidade desoladora estava a sua espera quando abria os olhos. Dias e dias daquela agonia se sucederam sem grandes modificações, mas Lee recusava-se a se acostumar com aquilo. Não queria fazer parte daquela realidade cruel. O chá verde que o acompanhava dentro do já surrado bornal de palha de arroz não seria fervido. O jovem chinês decidiu que ele o acompanharia no retorno a sua vila, às margens do Yangtze. As agruras que estava passando tinham algo de semelhante com os tempos difíceis nos campos de arroz arrasados pelas enxurradas de verão, mas naquele lugar faltava o sol, o chá e as pessoas que amava. Nos raros dias em que não trabalhava, Chii Miung Lee ia até as docas para ver a partida dos navios que um dia o levariam dali. Não queria mais viver na terra dos imperadores. O bornal de palha de arroz passou a não abrigar apenas as folhas de chá envelhecidas. Lee sabia que ainda levaria muito tempo, mas as várias moedas de prata que se misturavam aos fragmentos esverdeados e aromáticos dentro de seu bornal aumentavam a esperança do jovem chinês de, um dia, voltar a ver o sol de sua terra e o sorriso de sua querida esposa ao servir o chá verde em tigelas de porcelana branca.