ITINERÁRIOS DE CORAÇÕES

Aproximou-se devagarzinho, quase na pontinha dos pés, os olhinhos faiscantes passando por cada canto da casa, mas os ouvidos atentos nas risadas e conversas dos adultos lá no jardim. Deve ser aqui, pensou seu coraçãozinho num salto, recuando, deu um risinho mínimo, histérico, com certeza a porta estava fechada, porem tentou tocando a maçaneta, apertando-a, abriu!, seus olhinhos de contas faiscantes brilharam como pedra dourada dentro da água límpida ao sol. O quarto do azedo!, o quarto de Pader! Imaginava paredes negras com cortinas em tons mais negros, tudo sombrio e assustador, mas não!, ali estava um quarto comum de um rapaz: paredes num tom verde alface (era?), pôsteres de bandas de Heavy Metal, figuras de lobos (riu com o biquinho), Azedo!, e foi entrando em passos macios. Admirou a guitarra estrela sobre o pedestal junto a cama, o computador numa pequena escrivaninha quase junto a porta, Ah, a cama do azedo!, observou com o narizinho de pingo franzido, forrada com uma colcha cor de ameixa (era o único tom sombrio do quarto tirando os pôsteres de caveiras e monstros), uma toalha verde-musgo resvalava sobre o espaldar da cama, acariciou-a com a ponta dos dedos. Estava seca! Um par de coturnos pretos junto a cômoda e sobre esta uma coruja branca de gesso com um relógio na barriga, e o som estéreo ao lado, CDs empilhados numa prateleira acima, e alguns espalhados pelos cantos, Tudo banda de rock pesado!, mocorongo, horroroso, foi fechando o biquinho irônico, só ouve esse lixo de Heavy Metal! Abriu o pequeno guarda-roupa, viu calças pretas aos montes penduradas no cabide; os acessórios de couro e metal, Ridículo, murmurou baixinho com despeito. Fechou a porta com cuidado para não fazer barulho, embora a janela estivesse fechada. Sentou-se na cama, alisou a colcha, pegou o travesseiro, cheirou-o, fez uma careta contrita, riu, colocou-o no lugar. Deitou-se estendida com o vestidinho rosa desmaiado espalhado sobre o roxo ameixa da colcha. Abraçou-se. estava na casa de parentes de um amigo, disse a avó dele sorrindo, Ah meu amor que pena, disse sua avó (que mico), ela veio na esperança Helena, de ver o Pader, Mentira Dona Helena, Mentira!, gritou, quase se esgoelou, o rosto ficando inflado de vergonha, Vó nem falei isso, e a velha safada me entregando com mentiras, Que ódio!, embirrou o bico ainda mais enfezado, ouvindo continuar cheia de graça, Só fala no Pader, tão lourinho que parece um príncipe de conto de fadas com aqueles cabelos longos, mas é o jeitão enfezado de roqueiro, todo de preto que mais gama a Duchinha, e beliscou-lhe a bochecha abrasada, Vó para, Dona Helena e Seu Alfredo vão acabar acreditando, e o velho (ridículo) rindo, Meu neto é muito atraente, as meninas são tudo gamadinhas nele, desde bem pequenininho já recebia bilhetinhos de amor na escola.

Que ódio!, bufou irritada levantando-se, Nem quero mesmo ver este azedo!,horroroso, Foi resmungando baixinho enquanto fechava a porta. No jardim encontrou a avó a beber acompanhada do velho, enquanto Helena saboreava o que devia ser um chá já que segurava uma xícara fumegante.

_Olha a menina ai – disse o velho sorrindo.

_Foi aonde – perguntou a avó dela, sentada a uma espreguiçadeira, com uma rosa entre os cabelos mal tingidos e ainda volumosos – foi procurar o Pader – disse para o torpor da Duchinha – meu amor já se disse que ele não está!

_ Pode deixar que eu vou dizer a ele que você esteve aqui – falou o velho com um riso bonachão – e que mandou um beijão para ele; garanto que ele vai ficar todo bobo. – ainda acrescentou.

Que vergonha! Era agora se olhando no espelho oval em seu paraisinho cor de rosa. Lowe esparramado na cama – Gato preguiçoso! Para que tive a infeliz idéia de dizer “Vovó olha a rua da sua amiga Helena”? no carro, vinham do shopping, ela dirigindo, Metida!, Quer passar lá e ver o lourinho né, piscou-lhe, mas desconfiava que a velha é que estava louca para ver o garoto. Velha safada!, Bom, e ela ficou com a fama, mas não queria mesmo?, Queria. Ah, sai-sai Pader – disse enxotando o pensamento. Vinicius, bem moreno, com as axilas perfumadas, daqui a pouco chegando e lá ao pé da escada, Bico de Mafagaafooo!

Abraçou o gato negro, levando-o junto ao seio. Já era noite. Noite estrelada. O jasmineiro cheirava. Teve a idéia no sábado seguinte quando Andréia apareceu e conversavam no jardim junto à piscina, andando.

_Você sumiu aquele dia lá do baile.

_Eu te contei pelo MSN o que aconteceu – capturou uma rosa amarela e desabrochada – a briga dos funkeiros com o Pader e um outro horroroso amigo dele lá na pastelaria, me sujaram.

_ O baile bombou – disse Andréia requebrando os quadris – beijei muuuuito!

_O Vinicius estava lá – perguntou esticando o biquinho próximo a rosa como se fosse beijá-la.

_Vinicius só freqüenta boate de elite, Ducha. Só rave, musica eletrônica – revelou Andréia num remexer de ombros.

_Vamos curtir algo diferente hoje – foi o rostinho de balão aceso, de repente, róseo pela luz da tarde no jardim de grama verde, flores coloridas bem distribuídas e frescas, recém regadas.

Colocou um vestidinho cor de ameixa (lembrou-se bem de onde veio a idéia de comprar um, namorando-o sequioso a uma vitrine), encontrara Meida, antiga colega do fundamental, mostrou-a logo o vestido que comprou, distanciando-se da mãe que entrara numa loja de sapatos.

_Mas esta cor não combina com você, Ducha!

_É para uma grande noite – disse apenas sem nada revelar. Não era boba; nem a mãe saberia dos seus intentos com aquele vestido cor de ameixa.

Maquiou-se púrpura entre os olhos, os labiozinhos curtos num tom violáceo. Admirava-se. O vestidinho cor de ameixa com mangas um pouco fofas, as luvinhas de renda preta. Gótica!, sorriu fechando o bico como puxado por um zíper, Ah, desceu os olhinhos minúsculos, contorcendo o pescocinho mínimo, para os pezinhos metidos em sapatinhos roxos fechados de saltinho grosso, Chique!, Gótica! Espalhou um pouco de brilho pela face maquiada em leve tom violáceo. Gótica!

A mãe e a avó admiraram-se, sentadas a sala, assistindo a novela, e o gato vindo logo atrás dela descendo a escada, preguiçoso, negro.

_Vou a uma festa rock – disse assim por que assim é que achava que as “coroas” poderiam entender.

Esperou muito por Andréia. Ela não vinha, deu de ombros, ia mesmo sozinha, Até melhor!, mas fingiu para a mãe que estava saindo acompanhada; gritou do portão as gargalhadas como se conversasse com outra pessoa.

Dentro do ônibus sentiu-se etérea em seu vestidinho cor de ameixa ao meio de uma gente com roupas um pouco “austeras”. Achou um lugar lá junto ao motorista, quando achasse estar perto então perguntaria, Pode me deixar perto do “covil”?, O que é isto?, Tentou explicar atropeladamente com o biquinho tremendo, Não é um lugar “decente” para menininhas como você descer, Mas desceu, achou graça ouvindo o motorista dizendo com voz debochada, Cuidado hem Chapeuzinho Roxo!

Achou um ambiente estranho como se debaixo de um viaduto, Mas não era mesmo!, motos passavam velozes, uma galera de preto andando em grupos ou isolados; alguns ostentando capas, outros sobretudos, O que era aquilo o Genne Simmons?! E riu, desse ela sabia, e como não, mas parecia um grande vampiro desses de filmes antigos de Drácula, nada haver com os vampirinhos novos de cabelinhos espetados e pele pálida. Andavam errando pela calçada, pelos meio- fios ou meio da rua. Resolveu segui-los, Na certa vão todos para “O Covil”. Salomão. Braços tatuadissimos, piercing nas sobrancelhas, no nariz, nos lábios e até na língua, mostrou-a a língua grande e rosada com um piercing de bolinha preta, mas o que lhe causava medo era aquele modo de rir dele, escancarando aquelas mandíbulas enormes, os dentes enormes como de um animal feroz. Salomão! Olga alisando aquela barbicha crespa e vermelha dele. Pader! É por Pader que estava indo ali, Azedo!, sabia que ele freqüentava esse lugar direto, ouviu a conversa dele com Danilo, Vamos lá cara no “covil”, o Thiago, aquele pancadinha do skate e levou lá, lugar maneiro du’ca, Só rola som underground, e ainda tem uma biblioteca no sótão. Biblioteca no sótão? Num lugar desses! Underground. Livros estão virando coisa de gente “pancada”, quem que disse essa “bobagem”?, A professora Estela, que gritou na cara da Meida, Você tirou zero Meida, Zero, não acertou nada!, nada!, e a Meida deu de ombros, e a professora levava alem da pasta, sempre uma bíblia de capa preta e letras douradas, arrastando um longo vestido jeans, Sou uma mulher cristã Meida, uma mulher crista, Vou orar por você, ora que melhora, Mas zero Meida, Zero!, Não acertou nem uma questãozinha, Deu um pulinho pelo sapatinho, Hoje descubro a verdade (que verdade?). o lugar. Um antro, o biquinho fez uma careta disfarçada para o homem de óculos parado a portaria. Usava uma camisa xadrez, parecendo um nerd; tinha um jeito de se locomover de alguém que quebrara a clavícula.

_Um ingresso por favor – disse tirando uma nota rosada de dentro da bolsinha tiracolo de couro da mesma cor do vestido.

_Hoje as grandes atrações são as bandas Apokalipty Raids e Claustrofobia – disse o homem num certo tom lento de voz tal como um disco em baixa rotação.

_Uau – e nem sabia do que se tratavam as atrações, os olhinhos tentando buscar algo lá dentro, vendo o tumulto. Havia uma banda de deathcore no palco pequeno quase junto à platéia. O caos era tanto na musica, instrumental pesado que a menina entrando se viu entrincheirada. Já deve ser a banda Claustrofobia!, mas não era, e ela nem reconhecia o amigo do irmão no palco cantando, surrando a guitarra; os cabelos desgrenhados nos olhos, um monte de garotos sacudindo os cabelos sem parar; o som gutural e denso, continuo em meio ao instrumental caótico, Credo!, misericórdia o que eu faço neste lugar, e foi tentando cortar passagem entre os sacudidores de cabeça, com a ajuda dos cotovelos nos bracinhos curtos, Ai!, pisaram-lhe no pezinho, saiu no pulinho porque formava-se uma muvuca embolada de garotos fedorentos, cabeludos, suados, berrando evocando o ar com os punhos. Antes se sentiu arremessada para um canto, percebeu que era um balcão de bar, pediu ofegante, descabelada já, Onde estava a sua presilha negra em forma de borboleta, onde?, Desistiu de procurar, pediu ao gorducho bigodudo atrás do balcão uma Ice, Tinha?, Trouxe-lhe, Refrescou o biquinho, passou o dorso da mão sobre a testa suada, observou a muvuca de preto próximo ao palco, todos aglomerados, e o som ensurdecedor, caótico e gutural, Credo!, pensou, Não acredito que vim para um lugar desses atrás do... Pader, Azedo!, Cadê ele?, e foi tentando se equilibrar sentada naquele banco comprido junto ao balcão. Chegou perto dela então, e o coraçãozinho deu um salto!, aquele rosto branco tênue maquiagem negra em torno dos olhos, todo de preto, coturnos, os cabelos louros caindo sobre os ombros, debruçando-se no balcão, pedindo cervejas, duas, deu a outra lata ao rapaz de cabelos desgrenhados ao lado dele, bem mal vestido, reparou Ducha horrorizada num bico contrito, uma calça jeans tão esfarrapada que parecia ele ter vindo salvo de um terremoto, mas Pader, Ah!, todo de preto, louro, coturnos, consegue ser horroroso também!, corrigiu quanto antes mandando Ice pelo bico adentro, Nem me repara eu, Duchinha, Dasha, aqui do lado dele, bobão, Metido!, azedo, horroroso, parece uma boneca gótica monstruosa, foi o rostinho inflando vermelho, e pediu outra Ice, e ele falava, Pader assim, Que banda foda, foda!, sacudindo os cabelos louros, O outro de calça toda esfarrapada, os cabelos parecendo de um selvagem saiu gritando, com uma lata de cerveja a mão, assim mesmo se atirando no meio da muvuca, quase como se mergulhasse, e Pader rindo, rindo, Bobão!, fez o biquinho enfezado, mandou Ice para o bico, Essa merda não dá onda!, e Pader debruçado sobre o balcão, mas veio vindo uma galera para junto dele, tinha uma garota, Que olhos amarelos cruzes!, Seria de verdade?, deve ser lentes, acreditou. Toda de couro preto, com unhas longas pintadas de preto, olhou as suas, Esquecera, Rosa desmaiado!, aqueles dedos como de umas lesmas com unhas negras e longas pegaram o queixinho de Pader, Nojenta!, contraiu o rostinho rechonchudo para o lado, Não quero ver, Os cabelos dela parecem fogo!. Pediu uma bebida mais forte, Tem?, perguntou num biquinho momo atrevido, as mãos segurando o queixo, as luvas de renda preta destacando a pele como tatuada, Chique!, Gótica!. Tequila ou malibu?, Qual a mais forte?, Aconselho malibu para a menininha, disse o homem num tom quase paterno, É mais delicado, Não tequila!, respondeu atrevida piscando os olhinhos faiscantes, e veio o copo pela metade, a bebida de um amarelo ouro fascinante, Desceu quente, seca, Ui!, arrepiou, disse num biquinho , toda eriçada como um gato de frente ao outro. Observou Pader, ele bebendo cerveja ali encostado, sozinho, mas seu coraçãozinho se remexia tanto, Ai que medo!, Medo de quê?, tentava se convencer, De falar com este bocó horroroso!, mas quando foi se aproximar ele foi saindo marchando rumo a muvuca. Acabava de entrar no palco a banda Claustrofobia. Perdeu-o de vista no meio de tantos garotos todos vestidos iguais , mandando descer mais da tequila, arrepiou menos, esticou a cabeçorra no pescocinho mínimo entortando, Cadê, cadê, ah, lá, lá, um cabelo dourado, mas é outro, é, parece mais bonito, Ali é Pader, os olhinhos faiscantes tilitando tão pequeninos, Ah, se perdeu, pediu mais uma dose, Forte!, bom, Ui!, sentiu um alvoroço vindo de dentro, Explodiu numa gargalhada, o biquinho tremendo, Que olhos debochados de branco irisado de sangue, rindo, rindo, rindo, Os olhos grandes! Voa, voa fadinha de roxo, Suspendia-se, sentia-se um títere puxado por linhas imaginarias, Estava sobrenadando no mar da muvuca de preto, ao ritmo denso, ao vocal gutural e o instrumental pesado do death da banda Claustrofobia. Nem sentiu o baque, viu-se deitada no chão, olhando aqueles cabeludos, rotos, suados e fedorentos rindo para ela (ou dela), uma mão a ajudou se levantar, Mão nem pesada nem leve. Cabeludo, desgrenhado, suado, calça jeans toda esfarrapada, Vou levar você lá para baixo, é mais calmo, Parece não estar nada bem, foi dizendo ele, e ela ria, ria, ria, encostando a cabeçorrinha ao ombro dele e deixando ser impelida para longe da roda punk, Mas o som, quero curtir o som, era ela alterada, balançando o vestido, Sentiu os degraus, a luminosidade mais atenta, embora um pouco fosca. Uma poltrona, poltrona mesmo!, tocou-a, Macia, cheia daqueles furinhos, lembrou da cadeira do barbeiro quando o vovô a levava com ele, e ela ficava ali, mas aquela era outra, aqueloutra, Alisou. Riu, riu, riu, encostou a cabeçorrinha na mesa, Mesa!, sentiu o braço do rapaz sobre sue ombro, levantou o rosto, rindo, o biquinho momo tremendo, Observou aquela face morena, passou as mãozinhas pelos cabelos desgrenhados dele, Longos!, ele riu, riu mais, Pader, Pader não é você, disse fazendo o biquinho, Sou o Pader sim, sim, disse ele, Você está bêbada e não consegue enxergar direito meus cabelos louros, meus olhos verdes, e arregalava os negros dele, Não, não estou bêbada, retrucava balançando o dedinho junto ao rosto dele, Dois rostos, mas dois rostos morenos como um saindo de dentro do outro, Quase pardo, era pardo!, Não, não, você não é o Pader, Pader é branquinho, branquinho, chega a ter sardas perto do nariz, E ele encostou o rosto ao rosto dela, Beija logo cabeçuda, Pader ou não devo servir! Beijou, o biquinho assim molhado, os lábios dele engoliram os seus curtinhos. Babento!, não é o Pader, você não é o Pader, gritou se afastando, sacudindo as mãos atrapalhadamente na tentativa de agredi-lo no rosto, Ele cingiu-a pela cintura, Vem para cá bonequinha monstra, Noiva do Chuck , beija este cabeludo aqui, E beijou mesmo, devorou os lábios daquele suado, fedorento, caindo por cima dele, A camisa preta de caveira dele era de mangas cortadas, seu rosto após o beijo caiu numa daquelas axilas peludas e suadas, ficou beijando, Pader que tal usar um desodorante, disse crispando o labiozinho bicudo, mas esfregou os lábios nas duas axilas peludas e suadas, o cabeludo ficou gargalhando sentindo cócegas, Vamos, vamos terminar isto em outro lugar, minha monstrinha , disse a abraçando com as pernas, sentindo as mãozinhas dela pelas fendas de sua calça jeans rasgada, Cuidado!, avançando sinal, Tou ficando alerta!, Acordado!, e ela rindo, levantando a blusa dele, Abdômen peludo!, pelos pretos, crespos, não deviam ser douradinhos?! E são, seus olhinhos que não estão vendo bem minha monstrinha, disse ele abraçando-a ainda mais, envolvendo-a, deitado sob ela, Ah!, gritou ou gemeu, Credo, nojento!, Pader bem a sua frente, de pé, com uma testa vincada pelo olhar intrigado, Ducha!, Thiago o que você está fazendo ai com a irmãzinha do Danilo?!

A rua silenciosa, as vozes dos que saiam dos bares e das tabernas pareciam ecos se perdendo num teto abobadado que era o próprio céu estrelado, que se apagavam paulatinamente conforme o palor da madrugada avançava horizonte rumo a todas as cabeças noctívagas. Pader e Thiago seguiam pelo meio fio, conversando, rindo, um pouco tontos ainda, bem agitados e satisfeitos com a farra.

_Showzão do Apokalipty Raids, hem, Pader.

_ Porra nem fala, zuamos para caralho né – e prendendo os cabelos dourados entre as mãos, jogou-os para trás, ainda observando – estava a fim da Duchinha mesmo?

_Se ela não sai do transe eu ia arrastar ela para o meu cafofo , e passar o cerol naquela monstrinha –e colocou a língua para fora.

_ O Danilo não gostou muito de ver a irmãzinha naquele estado , viu gritando para ela “Dasha isto não é ambiente para você” – e riram os dois, mas Thiago lembrou, Ela veio ao “Covil” por sua causa, ficou o tempo todo me chamando de Pader, e o então corou encabulado.

_ Tá doido, não, a Duchinha!

_ Ah se a monstrinha quiser eu dou um trato legal! – frisou Thiago numa gargalhada escrachada que ecoou pela noite silenciosa. Pararam a um ponto de ônibus, onde havia mais uma galerinha de preto esperando, e mais gente voltando de bailes funks e boates. Sentaram ao meio fio. Limpando o nariz com o dedo indicador Thiago foi dizendo, O Danilo ficou puto mesmo , veio de carro buscar a irmãzinha, e podia nos dar uma carona.

_Não foi por isso – disse Pader suspendendo os ombros – ele só veio buscar a irmãzinha, mas ficou bem chateado, sim, acho que bem puto, nem falou direito comigo, e eu que liguei avisando para ele.

_Você podia ter deixado eu levar a monstrinha comigo – disse ainda futucando o nariz com o dedo, Thiago.

_Não cara, a Duchinha não, a irmãzinha do Danilo, você é louco! – e cochichou – pega essa puta funkeira ai atrás – Encostada ao poste em uma mínima blusinha e shortinho Saint tropê, os seios e as coxas pareciam explodir em protuberâncias alvoroçando a libido dos rapazes.

_Pega você – respondeu Thiago quase alto – tá de olhos aboticados em cima de você.

O palor da manhã já bafejava com pardais se alvoroçando entre as copas das arvores na praça, quando Pader cruzou-a sonolento, sozinho, sentindo a atmosfera em torno de si tornar-se aos poucos gris. Bocejou, cruzou os braços. Os postes ainda estavam acesos, mas pouco a pouco iam se apagando. Ducha!, pensou cismado, a fim de mim? Sempre achei que ela gostava do Vinicius, e quase falou sozinho no meio de um bocejo que saiu natural, avançando a rua onde mora, quebrando para a calçada, mexendo nos cabelos, sorrindo, vaidoso?, feliz pela noitada na taberna underground. Apalpou os bolsos, achou a chave. Entraria sem que os avós o vissem chegando àquela hora da madrugada, quase amanhecendo. Nem percebia que o amanhecer era um momento mágico como o descortinar de um lençol pouco a pouco da terra. Um cachorro vira-lata passou por ele, desconfiado, rabo entre as pernas. Domingo!, ah dormiria até depois do meio-dia. Algumas folhas sobre a calçada, uma brisa fresca, o trinar mais agitado de um bando de pardais. O sacolejo do banco traseiro do ônibus, a galera de preto se juntou, uniu-se, alguns passaram por baixo da roleta. A velhinha, a avó de Thiago, os olinhos míopes. Anjo, vê se podia? Perguntou-o: Você vai vir de novo?, Vou, respondera, vou sim vovozinha, e ela ficou tão feliz, esperançosa, afagou-o no rosto. Sorriu após um bocejo, O seu portão!, mas deixou a chave cair de tanto sono que tava, agachou-se para pegá-la, riu, caindo sentado, Será possível?, bêbado, deixou-se ficar um pouco sentado ali no chão. Uma penumbra gris como nevoa envolvia a atmosfera silenciosa da rua, então avistou na calçada a frente, e entre um poste rapidamente se encolher: a camisa com a imagem de São Sebastião. Andando sozinha?, riu, levantou-se um pouco cambaleante, e observou, via apenas algo como um lenço branco esvoaçando a leve brisa detrás daquele poste; desviou os olhos para o portão de ferro um pouco enferrujado da casa a frente, e a janela que dava de frente para o muro estava de luz apagada. Riu, observando que ali morava um travesti. Travecão velho, mas pouco o via na rua. Cuidava de um garoto de olhos estrábicos. Gente esquisita, dizia sua avó. Virou-se sacudindo os ombros, com a chave pronta para abrir o portão. Sentiu. Sentiu o que?, passou-lhe um arrepio na nuca, e voltou-se de imediato, desconfiado, mas aparecia atrás do poste o lenço branco esvoaçante a brisa, e surgiu-lhe a mente a imagem do santo de cara estertorada, crivado de lanças. A velhinha de boca murcha, olhinhos míopes perguntando com voz triste “Você vai voltar?”, “ Nunca vi um menino tão bonito como você!”. Sentiu o rosto enrubescer agora em pleno palor da manhazinha fresca. O lenço branco parecia ainda ali esvoaçante, incomum aquele poste. Atravessou a rua, intrigado, chegou perto, ofegante, testa vincada, enfezado, mas o lenço continuava. Sem reação, quase como inanimado, se não fosse aquela emanação humana que dava para sentir, embora tão débil, um respiração (era?) fraca, um fio se respiração fosse. Voltou-se sem mais curiosidade, dando de ombros, pisando firme em seus coturnos pesados, mas quando abriu o portão e entrou passou o olhar para o outro lado da calçada, desconfiado, e viu apenas o baque do portão de ferro enferrujado batendo com rapidez, e o lenço branco não mais se encontrava entre o poste, esvoaçante.

Rodney Aragão