Bolo aos Peixes - Parte 4
- À você! - Dediquei o brinde, imediatamente entornando o copo, debelando a cerveja numa talagada só.
Senti-me tonto. Senti-me saindo de meu próprio corpo. Não estou mais diante dela onde tudo começou. Viajei em espírito fronte a amálgama iníqua e querubínica de tal rosto aliciente a poucos centímetros de distância do meu.
Ariadne não soube o que falar. Ficou olhando pro fundo do copo pela metade como se a lógica luminosa da pouca bebida ingerida pudesse trazer alguma explicação do fato de ela ser uma musa inspiradora.
- Eu não entendo isso - Começou - Eu não sou nada daquilo que você escreveu, cara!
Enchi o copo, observando-a tentando colocar em palavras a confusão de pensamentos que espocavam em sua cabecinha linda e mendaz. Como se abrir a boca não fosse se trair de imediato.
- Eu não tenho realmente nada a ver com a garota que você descreveu, cara!
Dei uma longa golada.
- Sabe, é tão bonito o sentimento que você tem por ela qu...
- Por você! - corrigi, em tempo.
- NÃO, não é por mim - Falou, já aumentando o tom de voz - Eu não tenho a pureza que você diz que eu tenho. Eu sou louca. Eu não presto. Eu sou uma psicopata. Eu não sou linda como você a descreveu. Eu não sou capaz de despertar amor em alguém, porque eu não sou digna disso.
Continuei bebendo. A porção de fritas chegou. Levantamos da mesa pra ela ir fumar. Saindo da parte coberta por um toldo, ela me abraçou. Um amplexo apertado. Um abraço como nenhum outro, como nem um outro. Um abraço soltando sentimentos animalescos que - tal como animais em um zoológico - estavam presos dentro de uma jaula andando de um lado pro outro, ariscos, querendo escapar, ganhar liberdade, ganhar um habitat natural, se livrarem das amarras, da mesquinhez, da dependência de outrens. Nos abraçamos como se não houvesse mais ninguém no Universo, como se fôssemos os últimos filhos do Gozo, como se fôssemos a última centelha do fogo da esperança da recuperação/instalação do Amor na Humanidade.
O beijo foi inevitável. E doloroso. Nossos lábios tremiam. Fremiam. Encontravam-se. Desencontravam-se. Mordiscavam-se. Tocavam-se. As salivas misturavam-se. Senti-me abençoado. Confuso. Intrépido. Aquilo sempre acontecia. E o final era sempre o mesmo. Eu sabia que não era uma meia dúzia de cartas que mudariam o gênio e a forma dela de encarar o amor. Eu precisaria de mais do que palavras. O mundo precisaria de mais do que ser mundo. A vida precisaria mais do que ser vida. Talvez unidas todas essas forças conseguissem escalavrar e arrancar a carapaça de indiferença que ela incrustou no coração. O amor inexistia naquele coração que batia descompassadamente junto ao meu enquanto osculávamos numa noite quente sem luar.
Voltamos à mesa. Ela desistiu do cigarro. Ocorreu-me - de forma bem pretensiosa - que eu era tão-somente melhor do que aquele vício. Eu adoraria ser seu inseparável companheiro. Eu adoraria estar ao lado dela vinte vezes por dia, amainando ansiedades, acompanhando pensamentos soturnos, esfarelando no ar após o sopro advindo de um beicinho lindo e rosado - que era o que acontecia na realidade, apesar de eu não ter a mesma sorte de desaparecer com qualquer brisa leve e passageira do destino.
Talvez a demonstração de afeto fosse apenas uma manifestação de agradecimento.
- Enquanto você tomava banho, eu peguei um cigarro e ele caiu da minha mão e rolou pra debaixo do sofá...
- E daí?
Largou o palito com que perfurava as batatas e passou a vasculhar a bolsa.
- Também achei isso - e esticou o braço: três folhas de caderno vincadas de tanto serem dobradas e desdobradas. - Lê pra mim? - Pediu, sorrindo com sincera ternura.
Era uma carta, escrita em alguma tarde, no horário de almoço. Em uma das muitas tardes que eu deixava de comer pra escrever para a mais docemente amarga de todas as algozes. A segunda cerveja chegou em tempo. Tornei a encher os copos. Esvaziei o meu de uma vez e tornei a enchê-lo.
- Bom, lerei.
- haha, sim!
E seus olhos pareceram brilhar.
Primeiro, li em silêncio.
(Agora sim eu realmente ACHO que continua...)