Bolo aos Peixes - Parte 3

- O que foi?

- Não posso mais continuar com isso, Ariadne...

- Por quê? Não é bom?

É, é sempre a melhor coisa do mundo ficar com você aqui, em paz, no sofá, te beijando, te querendo por todas as encarnações possíveis enquanto um tsunami devasta a China, enquanto cientistas clonam marcianos, enquanto pessoas vendem areia no deserto, enquanto a bolsa de valores explode, enquanto as nuvens fazem desenhos de super-heróis decadentes, porém, baby, já não suporto mais o período refratário do seu calor por mim.

- Hein? Não é bom? – Insistiu ela – Você sempre começa falando as coisas, me deixa curiosa, pensando mil coisas e depois fica aí, com essa cara de peixe morto, sem falar nada. Qual é? Já vai ficar mudo, como sempre? Você nunca tem nada pra falar pra mim, acho isso impressionante! Eu nunca sei se acredito se você gosta de mim ou não, velho...

Ganha uma discussão quem subverte as acusações. Ganha uma discussão quem sabe argumentar. Ganha uma discussão quem não fica embotado.

Estávamos em pé, recostados na sacada.

- Ariadne - Falei - Só tem autonomia pra falar sobre sentimentos aquele que não os possui.

Ela não esperava essa resposta. Tampouco eu, que mal sabia o que estava querendo dizer. Vi seus lábios se entreabrindo na menção de retrucar, porém, o lampejo de algum pensamento - que interpretei como sombrio, no mínimo - fez com que eles se transformassem num ricto de desgosto. Baixou os olhos, fitando um xaxim esquecido há tempos num canto da varanda.

- Vamos naquele barzinho onde nos conhecemos? - Falou, sem erguer os olhos do xaxim abandonado.

- Fazer?

- Conversar, beber...

- Gastar...

- Inclusive.

- Você veio de carro?

- Não, de metrô.

- Tá, vamos - Respondi.

Tomei um banho e me vesti no tempo que compreendeu a consumação de dois cigarros.

- Você vai morrer rapidinho fumando nesse ritmo, coisa linda!

- Você não fica bem me alertando de uma morte precoce...

- Por quê?

- Porque você vive querendo se matar!

- Não sou um mártir, cara! - Falei, andando de um cômodo pro outro procurando alguma coisa. - E não necessariamente "querendo me matar". Só morrer já me basta.

- Li algumas coisas no seu computador...

- Que coisas?

- Uns arquivos de textos guardados dentro de uma pasta de nome "Cartas não entregues".

- Ah, sim... - Murmurei.

Emanações sinérgicas entre ela e a parte parva deste cérebro malsinado que habita meu crânio: não sei o que e como falar. Sempre tive tudo na ponta da língua e agora infinitas palavras dançam na minha retina sem que eu consiga escolher uma meia dúzia pra me colocar na defensiva.

Foi ao banheiro lavar as mãos. Da varanda pude ver um casal no ponto de ônibus. A moça segurava um buquê de flores. Ariadne encostou ao meu lado. Apontei o casal.

- Você gosta de romantismo, Ariadne?

- Ah, acho bonitinho com os outros - Respondeu, sorrindo. - Corajoso o rapaz ali, hein?

- Verdade - Respondi, torcendo o nariz - eu não teria coragem de dar rosas pra alguém...

- Não, não falo da coragem de dar as rosas.

- Fala do que, então? - Eu quis saber.

- É um travesti.

Esforcei-me pra entender o que ela estava falando. Depois percebi que a moça do casal não nasceu moça.

Entramos no metrô. Sentamos num banco lateral. Ariadne cruzou as pernas. Não andávamos de mãos dadas. Não andávamos de braços cruzados. Parecíamos irmãos. Todos percebiam que não éramos um casal. E isso me doía.

- Odeio sentar de lado - Resmungou.

- Tem gente que tá gostando de você sentada de lado...

- Como assim?

Indiquei um carinha que estava no banco em frente. Ele percebeu que não éramos namorados. E intercalava os olhares entre o rosto e as pernas dela. E não disfarçava. Ninguém me respeitava no mundo.

Ariadne pareceu gostar daquilo. Gostava de ser provocante. Gostava de iludir, de deixar nuances no ar - simplesmente para destroçá-las todas com um gesto indiferente e cruel, depois. De qualquer forma, ela levou as mãos para ajeitar o cabelo e foi surpreendida pela minha mão segurando seu braço, interrompendo o gesto.

- Você sabe que não precisa disso, beibe - Falei, e olhei feio pro rapazola paquerador.

Ele finalmente desistiu das secadas, vendo que não tinha a menor chance tanto com ela nos amassos como comigo na porrada.

Sentamo-nos na mesma mesa do primeiro dia. Aquela mesa foi o Marco Zero. Pedimos cerveja e uma porção de fritas - como da primeira vez.

- Lugarzinho do caralho!

- É!

A cerveja chegou. Enchi os copos. Erguemos os copos pra brindar.

- Brindar o quê? - Perguntei.

- A musa inspiradora daquelas cartas maravilhosas que você escreveu e nunca me mostrou! - Respondeu, sorrindo, acabando com a minha vida. - Que tal?

O bar estava apinhado. Barzinho com mesas ao ar livre. Mesas quadradas e redondas. Inúmeras Happy Hour acontecendo. Celeuma. Muitas buzinas, como sempre. Algo em mim doía.

Ariadne pegou na minha mão, com seu peculiar toque gélido, salientado pelo copo de cerveja. Olhou bem nos meus olhos. Séria.

- São pra mim? - Perguntou.

Ergui o copo.

(Continua [eu acho])

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 05/04/2011
Reeditado em 07/04/2011
Código do texto: T2891840
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