O que não pode-se esconder

Ao primeiro olhar, era um menino e nada mais. Senão um garoto comum entre tantos outros garotos, mas os olhos postos nela, por precaução de não perdê-la de vista a partir daquele instante mágico. Ela não reparou, naquela quarta-feira pouco iluminada, os olhos negros do garoto. Chegou mesmo a ignorá-los e continuar sequer pensando em nada. Uma mulher, embora contida em face de menina, não poderia crer, um dia, numa paixão tão forte quanto aquela que surgia já, naquele momento. Não sei se, instantaneamente, no coração dele, mas surgiria, logo mais, no dela.

Não, ele não parecia clamar pelos pensamentos e atenção dela. Ela, ausente do mundo, aceitou um pedido de amizade e um convite para saírem entre amigos.

Saíram...

Casualmente, tão diferente da quarta-feira acinzentada e enfadonha, do outro lado da mesa do bar, os olhos dela já desciam, silenciosos, até os dele e vice-versa. Ninguém, aparentemente, poderia perceber a consumação d'um desejo aceso em labaredas, naquele segundo, nos dois. Olhos dela que resvalavam entre o céu acima dos olhos dele e, disfarçando, forçavam um encontro misterioso e violentamente insano. Daí para um beijo e muitos deles não demoraria. Foram alguns, sim, pouco cúmplices, mas totalmente loucos e desatinados. O primeiro deles, num ímpeto de desejo e satisfação pelo "ousar" sinuoso. Ele ousou e ela, antes evitando seus olhos, renderia, desde o instante, não só olhares, mas alma e coração. Num ensejo, não, mas para um sempre pouco provável. E passariam, a partir daquela noite, a serem para ela, os olhos dele, lábios, face e mãos eternos e necessários. Não! Não do garoto calado do primeiro encontro amigável, mas do homem que a fizera sentir a paixão dos ventos de outubro. Outubro clamado entre versos e muralhas. Versos de Wesley Thales e Rimbaud. Muralhas de preconceitos inaparentes. Ela o quisera 'homem' e assim o tivera algumas vezes. Ele a desejara, alternando emoções totalmente inversas. Não seria uma "crise" pertinente à sua pouca idade, mas as lutas pouco prováveis e quase imperceptíveis à sua instabilidade emocional e às condições opostas d'uma personalidade ainda em formação. Ela chorara pelo fardo da pouco estima dele. Dos olhos negros, divididos entre ela e pêlos alheios, nós e corpos másculos; outros, pouco curvilíneos; d'uma sexualidade bruta que desvairava sua essência, tão sagrada para ela. Ele, o garoto, o homem, a fragilidade d'uma rosa, ainda, em seu botão. Ela, a menina sonhadora, a mulher ora apaixonada ora teimosa, a tempestade única e fatal diante d'um jardim inteiro. Seus medos entrelaçados. Dos dois. Entrelaçados, também, seus segredos, prazeres, dores abundantes, vontades pouco peculiares e infinita sintonia. Inexplicáveis semelhanças e divergências. Uma força arrebatadora d'almas que varava noites e dias, quando ausentes um do outro. N'alguns momentos, o fogo; noutros, a calmaria. Palavras e palavras perdidas. Poucas reencontradas. Ele seria para sempre seu maior problema, sua maior questão infundada e irremediável. Noites de lágrimas e dias de promessas de pouca ilusão. Mas ela ainda pensa e sente todo o "ele", é inerente à sua vontade. E ele, fingindo não saber, sem calar-se em pensamentos para buscar encontrar-se, tentaria, dia após dia, ignorar um amor incomum como aquele. Ignoraria até quando? Amor, sim, porque já o sentira e, involuntariamente, repelira-o por motivos quaisquer ou, talvez, sem motivo algum. Talvez por medo, pela dor de tentar ser o que não é e não ser o que, de fato, haveria de ser. Homem! Pensava, ela. Um homem diferente de todos os outros. Olhos de ônix. Olhos e essência. Olhos e afeto. Nunca poderia esquecer os olhos dele, luz de estrelas. Tampouco deixar de amá-lo. Nem mesmo na morte.

Anna Beatriz Figueiredo
Enviado por Anna Beatriz Figueiredo em 04/04/2011
Código do texto: T2889879
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