Bolo aos Peixes - Parte 2
- O que foi dessa vez, hein? Seu desgraçado!
E me abraça. E segura meu rosto com as duas mãos. Apalpa minhas bochechas. Puxa minhas orelhas.
- Por que você faz isso com todo mundo?
Por que eu faço isso com todo mundo? Tenho fome.
- Ariadne, tenho fome.
Ariadne faz macarrão. É a única coisa que ela sabe fazer – além de revelar ao mundo o meu potencial suicida. Além de ter a pele mais macia de todas. Além de ter o melhor perfume do planeta. Ariadne é além de qualquer coisa/pessoa que eu já conheci. Por isto, tem meu perdão quando o macarrão fica salgado demais.
- Eu desisto da queda pra minha pressão subir até lá novamente.
- Bom, errei – responde com uma colher de pau na mão - mas tem mais pra fazer, bonitão!
- Mas o que a trouxe até aqui?
- Ah, eu estava lá na loja e de repente vi você na televisão.
Quase cuspi no prato.
- Como assim? – perguntei.
- É – Falou, enrolando o macarrão no garfo. - Alguns repórteres espertinhos estavam na região filmando alguma coisa e de repente surge você, o furo do mês! – Parou de enrolar o macarrão e me encarou com um quê de raiva no olhar – Por que você faz isso comigo? Quer me deixar com a culpa pelo resto da minha vida, seu egoísta? E os seus amigos? A sua família?
- Amigos, família – resmunguei – o velho sustentáculo pra se manter na vida!
- A RAZÃO pra se manter na vida, arrisco dizer – Talhou-me uma Ariadne altiva, levando o macarrão à boca.
Não soube o que responder. Minha família era alguns poucos amigos. Minha família de verdade – consangüíneos - era uma cambada de animais hostis uns com os outros. E Ariadne não era nem uma familiar e também não entrava no mérito de amiga. E nem de qualquer outro tipo de mérito.
Demos um jeito na cozinha e, já na sala, ela abriu a porta da pequena varanda. Acendeu um cigarro. Sentei no sofá e fiquei esperando. Sirenes, buzinas, pneus no asfalto molhado. Fumava. Braço esquerdo enlaçando os seios e arrimando o cotovelo direito; cigarro na ponta dos dedos, apontado pro alto. Halos azuis. Eu gostava de vê-la fumando, apesar de não suportar cigarros. Ariadne ficava linda fumando, com um ar propositalmente blasé, como se fosse uma madame com dezenas de lacaios no encalço esperando alguma ordem.
- Quero o fígado do Nietzsche.
- Quero o rim do Obama.
- Quero a barba do Schopenhauer.
- Quero Skittles.
- Quero o Big Ben na janela do meu quarto.
Eu faria tudo o que ela pedisse.
- Meu, pega o cinzeiro pra mim?
- Não!
- Você nunca faz nada que eu peço, hein?
“Mal sabe o que eu seria capaz de fazer por você, meu amor”, pensei com meus botões.
- Você realmente esperava me encontrar morto, não!? – perguntei.
- Sim – e tragou pensativa. – É, sim e não – soprou a fumaça pro alto fazendo bico. – Por quê?
- Por causa da sua roupa! – respondi. Um vestido preto, pouco acima dos joelhos, com anáguas nas mangas e deixando as clavículas tatuadas à mostra.
- É o seu favorito, né?
- Ééé... É engraçado você já vir pra cá preparada pro luto do cadáver do suicida e encontrá-lo vivo – Falei – Se decepcionou?
- Sim – respondeu – tá um calor infernal pra ficar andando de preto à toa por aí.
- Se você quiser eu posso cortar os pulsos agora, madame...
Ficou contemplativa, de repente. Me olhando. Pensativa. Deu uma última tragada e deu um piparote na bituca, que ascendeu em direção ao sol pós-chuva de final de tarde antes de sucumbir à lei da gravidade.
- É por causa de vocês, fumantes, que não pode chover nesta cidade sem ter pelo menos um ou dois mortinhos em enchentes – protestei.
- Bonito é jogar esses papéis catarrentos na rua, não é? Hein? – Disse, sarcástica, fazendo alusão aos pedaços de papel higiênico usados pra conter a coriza que é cortesia de uma rinite alérgica infernal e que eu, sim, jogo aonde quer que eu esteja que não tenha lixeira por perto – Trocou aquela toalha de rosto imunda?
- Bom – respondi -, é a minha invejosa vingança contra todos aqueles que não têm rinite. E não troquei a toalha; parei de lavar as mãos e o rosto.
- Nojento. E por falar nisso, e a tal da epistaxe? – Perguntou do banheiro.
- Fiz uma cauterização anteontem. Cansei de ficar perdendo sangue e não morrer. Dá trabalho demais ficar lavando capas de travesseiro e lençóis toda semana.
- Faz sentido – disse – posso deitar no seu colo?
- Sure!
- Thank you!
E lá estávamos nós, no sofá... Eu sentado com as pernas estiradas em cima de uma cadeira e ela com a cabeça em cima de um travesseiro em cima das minhas coxas. Ficamos nos encarando durante um longo tempo. Meus dedos passeavam em seus cabelos castanhos, lisos, cortados na altura do ombro. A mão esquerda dela alcançou meus cabelos e passou a retribuir o cafuné.
- Eu adoro o seu cabelo assim... Promete que não corta nunca mais?
- Ariadne, não posso prometer uma coisa dessas enquanto as pessoas tiverem o telefone do corpo de bombeiros.
- Mas como gosta de fazer um drama, meu Deus!
Eu me segurava ao máximo para não me inclinar e tocar aqueles lábios grossos e rosados. Os resultados desse tipo de contato entre nós sempre me fazia mal. Odiava aqueles lábios por eles me fazerem tão bem, por me fazerem gostar das pessoas, do céu, dos pássaros, dos carros, dos ornitorrincos, dos operadores de telemarketing; por me fazerem olhar o mundo por um ponto de vista diferente, mais otimista, esperançoso, pacífico. Sim, eu odiava a expansão de horizontes que uma simples troca de cuspe com ela me causava.
Mas ela puxou minha cabeça e o toque aconteceu. Senti um peso dentro de mim, uma palpitação, um cheiro de morte exalou dos meus poros, pois, isso sempre acontecia, sempre, sempre tudo acontecia e não havia um propósito, não havia um amanhã. Era aquilo e pronto.
Desgarrei-me daqueles lábios mágicos.
(Continua)