Bolo aos Peixes
Eu fico me esgueirando pelas paredes beges desses corredores silenciosos. Eu fico encostado, derretendo, dentro desse elevador minúsculo, sentindo o frio de suas paredes metálicas, olhando o meu reflexo convexado no domo que protege a câmera de segurança e ele desce cinco andares, até o térreo, ao invés de subir cinco pra eu poder pular do décimo e tem esse cara, agora, no térreo de um prédio que não tem subsolo, me perguntando se o elevador vai subir. “Não sei, cara”, eu respondo meio aéreo, “já não se tem mais pra onde descer; esse planeta é o fundo incavável do poço espacial”. Ariadne, eu juro que eu pulo. Ariadne, o elevador sobe até o oitavo. Ariadne, queimei a língua com café. Ariadne, vou subir lá. Ariadne, tenho uma moeda no meu bolso; coloque-a sob a minha língua; não posso dar calote em Caronte, Ariadne. Basta de dívidas. Já não consigo pagar o serviço que você me presta com a sua beleza caótica, exótica, Ariadne; minhas palavras valem ouro por aí: ouro de tolo pra você. Ariadne, me tira dessa? Petrarca não conseguiu nada. Não serei lembrado daqui quinhentos anos pela minha devoção cega – este é o único ponto em que nossos caminhos (os meus e os dele) divergem, sabe? A parvoíce é a mesma. O culto a um fantasma é o mesmo. O derramamento de lágrimas no escuro deve ser o mesmo. Eu ando pra trás, Ariadne. Mas o tempo não me deixa chegar onde eu quero. Eu uso todas as minhas forças para empurrar as barreiras do tempo mas não adianta nada. Minha sanidade ficou lá atrás. Meu amor-próprio ficou lá atrás. Hoje eu vivo das reminiscências do que me foi arrancado e na plenitude do que me foi incutido – o que, de fato, é um estágio pro inferno. Faz frio aqui em cima, Ariadne. Está tudo muito calmo aqui em cima. Só que o ar está impregnado de ondas invisíveis de sinais de antenas de celulares, de televisão, rádio; satélites aos montes jogando raios telepáticos de morte na minha direção. Cavaleiros fofos em armaduras duras com espadas em riste empinam seus cavalos robustos nas nuvens que rumam para o Sul. Aviões de asas vermelhas transpassam os gasosos cavaleiros medievais. Esse tão-somente sem rumo destino a que todos vão; onde fica? Orquídeas brancas, cinzentas, úmidas, flutuam, e, abutres planam, felizes, prevendo o que pode acontecer por uma culpa que é e não é ao mesmo tempo sua, Ariadne, que, tal como uma criança na aula de biologia aplicada, mergulha uma rã em sedativos, a coloca num pedaço de isopor de barriga pra cima, afunda o bisturi num corte reto e certeiro no centro da barriga e puxa a epiderme para os lados e as perfura com tachinhas – órgãos prontos para serem expostos com um novo corte. Acontece que você foi além enquanto eu estava sedado; pressionou a navalha na minha carne, sangrou, rasgou meus tecidos e meu coração ficou exposto - músculo feio, idiota, carne vermelha nojenta pulsando, fazendo o favor de manter a continuidade desconexa de uma vida sem propósito – e você sambou nele, Ariadne, fez o que quis; rompeu vasos, entupiu vasos e depois o arrancou, enfim, deixando-o mergulhado dentro de um copo de plástico cheio de cerveja holandesa; batendo, pulsando, fraco, quase parando, ébrio, morno; morto. Você acha mesmo que eu vou pular daqui? Tenha dó! Não é só por que estou sentado aqui em cima - balançando os pés a dezenas de metros do chão, vendo os carros pequeninos lá embaixo e algumas pessoas se aglomerando e apontando pra mim; conjeturando sobre tudo e sobre nada - que eu vou me matar. Já me falaram que eu sou egocêntrico demais pro suicídio – e eles têm razão. Só que o meu egocentrismo, neste contexto, favorece o ato – Die Young , Stay Pretty. Mas a minha beleza jovem e a minha saúde – atributos que, mau grado meu, droga! – não lhe aprazem. É, difícil... Por isso eu não sinto vontade jogar o corpo pra frente e acabar com isso de uma vez; prefiro ficar em cima do muro, na indecisão, olhando os extremos da vida e da morte. Então eu me levanto e dou meia volta. Lá vem bombeiros encher a paciência. Lá vêm recomendações de psicólogos. Não se tem nem o direito nem de esfriar a cabeça pegando um ar fresco sem convocar a Sociedade dos Acalentadores Intrometidos de plantão. “Sim, sim” e “não, não” e “obrigado, obrigado”. Comprimidos. “Tem sabor Cianureto, moça?”. Ninguém entende. Ninguém compreende. Ninguém pode me trazer você. Não entendem meus motivos. Ninguém entende. Não há motivos. Não há nada. Nada além do Vazio. Além da dualidade do desejo: Você ou Não-Vida? No final, tudo dá no mesmo pra carne transitória; você é quem deu sorte, Ariadne, por destilar seu doce veneno em um masoscriba e conseguir, assim, se imortalizar. Azar é o meu, que pressiono esse recipiente de álcool em gel vinte vezes por dia pra ficar inalando como se isso trouxesse algum tipo de viagem alucinógena para um lugar onde não existe a penosa incumbência que é pensar – e ter memória, ah! - , droga, “moça, tem xarope de cicuta?”. Estou indo embora daqui. Estou indo pra casa e quero que você saiba que a primeira coisa que eu vou fazer quando lá chegar é enfiar a cabeça dentro do forno e riscar um fósforo. Não, minto, a primeira coisa que eu vou fazer é pegar aquela pilha de cartas escritas e não entregues que eu escrevi pra você, Ariadne, e jogar todinhas no picador de papel do trabalho. E não são poucas. Fosse em tempos de Inquisição, eu andaria por aí, vestido de bruxo, blasfemando, com cartazes com ditos heréticos e com todas essas cartas no bolso e, sim, na hora da fogueira em praça pública, eu gritaria em meio ao vozerio de meus algozes: “Façam com que as chamas de vossa ira lambam-me o corpo, conquanto que a fogueira seja acesa com as epístolas não entregues do pustulento amor que me fez enxergar a face do tinhoso tão de perto”. Durmo no sofá e sonho com você, Ariadne. Acordo com o telefone tocando. Não sei se atendo; sempre sei quem está do outro lado da linha. E é você. Três toques e o silêncio. Agora o celular vibra em algum recôndito lugar deste apartamento. Ele vibra. O som da madeira reverberando, ricocheteando por todas as paredes e agredindo minha serenidade. Ele vibra. Silêncio. Agora a campainha. Não estou pronto pra isso. Encosto o nariz na porta. É você, aflita, do outro lado, reduzida pelo olho mágico, guarda chuva azul, fechado, pingando. Queria ser um ciclope e soltar raios laser em você. Como não sou, abro a porta. Não tenho vergonha nenhuma na cara.
(Continua)