Minino

Todo dia eu subia as escadarias que davam no trailer. Tinha esperanças.

E cantava alto:

Você pra mim foi um sol

De uma noite sem fim...

Enquanto subia as pessoas olhavam aquela cantoria. Alguns gostavam, outros não. Há quem não goste da estampa do amor e da alegria.

Quando as águas escorriam morro abaixo fingia que caminha sobre elas. Um Cristo feminino.

Fazia um ano que ele se fora. E nem o corpo deixaram. No lugar só ficaram as marcas da violência. Quem o matou tinha raiva.

Lembrava-me de quando virava as tardes no trailer lendo com ele livros de piada. Como o amava!

Sua beleza não era evidente. Tinha uma vasta e despenteada cabeleira, rosto fino, nariz adunco, olhos fundos e um sorriso deslumbrante. Tudo aquilo, de um modo estranho, fazia dele um belo menino do rio.

Sim, por que detrás do trailer ficava um rio onde embarcações deslizavam ligeiras. Naquele ponto, como numa barragem, havia abundancia de águas. Conversávamos horas olhando a grande marca do horizonte feita pelas águas. De dentro do trailer, quando fazíamos amor, podíamos sentir o cheiro suave e verde das algas ribeirinhas.

Tinha ciúmes dele. Das meninas que sorriam e compravam picolés, dos homens que ofereciam mercadorias, das conversas sem mulher, das mulheres que o visitavam quando eu não estava lá. O trailer era o trabalho e a casa dele. Ali ele servia lanche, se divertia, amava, seduzia, se deixava seduzir.

Minino. Quem ganha um apelido desses?

Só quem não quer crescer.

Ele era o menino de todos.

O menino que não iria envelhecer. De quem não se sabia pai, mãe,ou irmãos.

Depois de sua ida uma outra chegou intempestiva. Tinha a chave do trailer. Entrou e abriu-o para a polícia. E não saiu mais. Não pude mais entrar.

Por mais que desejasse sentir o cheiro que ele deixava nas coisas, não podia entrar. Desejava ver nossas fotos, as capas dos CDs, as fotos de revistas presas nas paredes. Tinha vontade, mas sempre estava fechado.

No começo todos viam chorar perto trailer. Puseram flores, velas, cartazes. Não precisávamos de corpo para saber. A quantidade de sangue no chão tinha dado a certeza de sua morte.

Ficava olhando de fora aquela outra, que eu nunca tinha visto, cochichar com outros, chorar junto e depois entrar naquele que tinha sido o meu trailer também. Tentei entrar algumas vezes, mas a cara dela não deixava. A expressão dizia:

_ Não somos amigas, este lugar é meu e você não pode entrar.

Com o tempo só eu subia. E subia cantando. Sentava as margens do trailer para lembrar.

Lá embaixo as investigações haviam continuado. Parecia ter sido um homem enciumado. O corpo tinha ido para o fundo do rio. Mas as águas não o devolviam. Talvez as águas também o amassem.

Era estranho pensar que alguém odiou Minino. Ele que era só amor.

Subi de novo naquele dia. E cantei de novo.

Você para mim foi um sol

De uma noite sem fim

Que acendeu o que sou

E renasceu tudo em mim...

Na porta do trailer uma garotinha saía. Recolhi a chave de suas mãos e entrei. Lá dentro a outra estava sentada no chão sobre os joelhos. Separava fotos e colocava na mesinha de centro. Falou:

_ Então você também amava meu irmão!?

_ Ele era tudo para mim!

_ Vão escrever a história dele. Chegarão daqui a pouco. Acho que você também faz parte, não é mesmo?

Apenas sorri para ela. Sim, eu fazia.

Quando eles chegaram me pediram para contar sobre ele. Puseram um gravador a minha frente. Gastei horas para contar os anos que havia sido sua companheira de trailer e de vida, às margens daquele rio. Perguntaram-me qual seria minha sugestão para o titulo do livro.

_Minino.

_ Só Minino?

_ Só.

Norma de Souza Lopes