CONFUSOS SENTIMENTOS *
Antes de ali chegar, sofria, sim, mas tinha uma razão, um pretexto. Conseguira a possibilidade de mais um encontro, concedido como o último. Agora era o nada, nenhuma esperança, tímida que fosse como outrora, definitivamente fora a última tentativa. restava protelar por alguns minutos a mais, tentando mantê-la próxima, sabendo que a perderia irremediavelmente. Jogava uma cartada definitiva, os ventos sopravam contra ele, talvez um blefe, uma sobrevida. As palavras não o municiavam de novidades, era o repetir de um discurso desacreditado, a desnudá-lo em sua dignidade, numa súplica no olhar emocionado, uma faísca de luz no breu de uma noite escura.
Marcaram o encontro por insistência dele, ela bem que regateara, queria poupá-lo do inconveniente, mas a insistência venceu, resquícios de uma consideração dela por ele, nada mais. Era mais uma tentativa, de várias outras, infrutíferas. Chegara bonita, roupas novas, alinhada, como sempre, ainda mais para seus olhos sofridos, certos da despedida iminente, aquilo a fazia ainda mais bela, insinuante, desejada. Como brincam conosco os sentimentos, pensava consigo mesmo, amargurado. Embora sempre a quisesse, somente agora, que a perdia, ela crescia em suas retinas, parecendo valer mais na perda que na conquista.
A troca de olhares já diziam mais que as impronunciadas palavras, na verdade nada mais havia a ser dito, repetia-se a fita por teimosia, ou por querer revê-la ainda uma vez. Era um surreal diálogo mudo, em apelos surdos, em reclamos inúteis, um brado sufocado por uma causa perdida. Todas as reivindicações surradas pela volta de um relacionamento superado, esgarçado. Morto aos poucos, pela rotina e descaso, dele para ela, depois de um para o outro. Contudo, quando dela para ele, parecia não suportar, ela valorizava-se sobremaneira, a queria como nunca quis, justamente quando perdia todas as possibilidades de tê-la. Angustiava-se por ser deixado, esquecido, preterido, pior, substituído, sim, pois ela não o teria recusado caso não houvesse outro alguém merecendo seus sentimentos. Talvez não confessasse para poupá-lo, as luzes que a irradiavam davam conta de uma felicidade incômoda , viva e exuberante, sem ele.
Não queria convencê-la a voltar por pena dele, isso nunca, refreava as lágrimas, insistentes em aparecer. Estava amoroso, temendo por ouvir o mesmo discurso de negação, fazendo ver que mudara, que a amava ainda mais, como ele mesmo nem se dava conta antes. Convencê-la, contudo, presença ali e pensamentos em outro mundo, ou em outro alguém, era amargo. Ela que sempre se abria em sorrisos ao vê-lo e ao desejá-lo, parecia ausente, indiferente se não estivesse iluminada por uma aura de euforia prestes a eclodir, e por respeito, ou piedade, refreava diante a ele a sua própria alegria de viver. As sobrancelhas arqueadas, leve franzir de testa, como traduzindo a inútil empreitada, já descartada outras vezes. Inconfundíveis sinais de quem já se conhece,além da verbalização de palavras, renitente na recusa, decidida a recomeçar a vida sozinha, ou, quem sabe, em outros braços.
Inútil e covarde rememorar momentos, tempo juntos, como se reivindicasse direito adquirido por aquele coração ultrajado antes e liberto agora, para seu desespero pessoal. Era ele que estava enfraquecido, abatido e vencido por um inimigo invisível, talvez mais belo, melhor que ele, amante dedicado, alguém especial tomando o seu lugar, sendo detentor de carícias que já não lhe pertenciam. Sofria aos poucos em seu orgulho ferido, fazendo comparações onde se apresentava inferior, num inferno a queimá-lo e a reduzi-lo. Brigava a esmo, contra um provável adversário que não conhecia, não era assumido por ela, embora deduzível naquela felicidade que vislumbrava naquele semblante amado.
Fazer-se forte, estando enfraquecido, aviltado, alquebrado e sem argumentos. Ele já não era uma promessa, era o ontem, o conhecido. O outro tinha como trunfo ser a novidade, o sonho, o amanhã...
Estava em desequilíbrio na disputa, sabia-se pequeno, temeroso do desfecho daquele encontro, de previsível resultado . Tudo que poderia assacar em sua defesa já era batido, seria apenas a renovação de uma hipoteca nunca quitada, nunca satisfeita. Ela estava ali como detentora de seus créditos, não disposta a abrir mão de seus planos, nos quais ele não existia... Patético alegar coisas em desfavor do pretenso adversário, sempre negado por ela, mas vivo em seu olhar esperançoso e carinhoso. Uma sombra a incomodá-lo, inacessível por não vê-lo, uma briga com um inimigo ausente, mas, em suas sofridas suposições, avantajado diante a ele em desfavoráveis comparações.
Com ela tivera uma história de vida, nem sempre bem vivida, mas um tempo de convivência, infelizmente, a jogar contra ele. O coração dela pedia o novo, o inusitado, a renovação das esperanças aparentemente desfalecidas no convívio a dois. O outro uma surpresa,um novo começar, quanto a ele um convite ao mesmo, na renovação de promessas de mudanças, um remendo. Diz o dito popular: leite derramado não volta para a leiteira.
Naquele massacrante diálogo mudo, em troca de olhares furtivos, oscilando entre a compaixão dela por ele, a angústia dele por vê-la distante, a dor da perda por outro alguém, melhor sem dúvida que ele, o aniquilava...
Quis retê-la um pouco mais, ao fazer menção de sair, fazendo-a sentar-se novamente, delicado. Queria protelar aquele adeus definitivo, tirar aos poucos os aparelhos daquele relacionamento moribundo,talvez cultivado e assistido apenas por ele, como esperando, debalde, que ressuscitasse por milagre, num repente. Era protelar a dor, o não saber o que fazer depois da confirmação daquilo sacramentado, sepultado. Tiveram sonhos, o que foram deles ? Sumiram na poeira das rotinas, nem valiam como defesas, detalhes moídos, somados não teriam consistências...
Apenas aquele olhar, não de soberba, mas de respeito por ele, o crucificava penalizado, talvez lembrando-o, tardiamente, de não ter lutado pela manutenção de tanto carinho recebido e malbaratado...
Um leve roçar na face, como a concessão de um carinho fraterno e não passional, último aceno de delicadeza e consolo, aquele perfume tão dela, aspirava querendo retê-lo, era pouco diante ao muito que já viveram...Os lábios tão próximos e distantes, ela tão perto e tão longe dele.
Deixava o recinto em uma última saudação breve e se distanciava como uma ave liberta para viver na sua imensidão e liberdade. O deixando prostrado, incapaz de uma reação, vendo-a distanciar-se, excluído de seus planos, mero detalhe do passado.
Acompanhou seus passos com os olhos úmidos, não mais retendo as lágrimas vertidas, talvez como capricho da posse, sentimentos invertidos, quando se perde a quem se tinha, por desamor desprezada, doe a dor da ausência. A ideia de que está feliz longe de seus braços, mágoa confundida em saudades, expressão egoísta, ilusória crença que longe de seu domínio, inexistam luzes e alegrias...
*Selecionado para figurar em livro na antologia CONTOS DE AMOR, editora CBJE - Rio de Janeiro, lançamento março 2013.