A mais formosa das rosas

Ele se chamava Fabrício, tinha 20 anos, ostentava uma selvagem barba ruiva, era grande como uma montanha e há três dias estava construindo, com pedras britadas, um laguinho para peixes ornamentais no jardim japonês da casa da família Kanashiro. Ela tinha 16 anos e estava apaixonada. Quando voltava da escola, em período matinal, e após almoçar, gostava de ficar sentada num banco sob uma cerejeira a observá-lo, sempre na expectativa do momento inevitável em que ele passaria o poderoso antebraço pela testa suada e, com um sorriso tímido, pediria um copo de água. Ela corria à cozinha, escolhia o copo do mais fino cristal e enchia-o de suco natural gelado – era mais gostoso matar a sede assim, asseverava a si mesma. Ele sempre tomava a bebida de virada. Na quarta-feira ela trouxe também um sanduíche de queijo e ficou comovida quando ele devorou o lanche em duas e famintas bocadas. Assim que acabou de comer, limpou os resíduos da boca com o guardanapo de papel e estendeu a mão: Meu nome é Fabrício, e o seu, qual é?
Tomada de tremores nervosos, demorou muito a responder, sentindo na sua a mão bruta do rapaz, a palma era um calo só a transmitir-lhe segurança, força, energia. Por fim declinou o nome:
Hissako, me chamo Hissako.
Ele acenou com a cabeça.
É um nome difícil de a gente gravar. Posso chamar você de Rosa?
Ora, ele poderia chamá-la do que desejasse, de borboleta, lagartixa, do que quisesse! Não conseguiu responder de pronto, a emoção estava a lhe proporcionar uma suave e deliciosa vertigem.
É que eu gosto muito de rosas, explicou ele, é a mais bonita das flores, mas nem tanto como você.
Passou a tarde e a noite daquele dia envolvida na sensação de deslumbramento e saltou da cama aos primeiros acordes dos pardais. Quando saiu de casa rumo à escola, ele chamou-a e entregou-lhe uma grande rosa vermelha – certamente colhida ali mesmo, no jardim – com uma folha de caderno onde se lia: uma humilde florzinha para a mais formosa das rosas. A letra era um garrancho quase indecifrável, mas Hissako guardou o bilhete entre as páginas de seu livro de biologia como se fosse o mais fabuloso tesouro – e quando a rosa murchou, ganhou eternidade numa caixinha de vidro. Passaram a tarde inteira conversando, ela sentada numa cadeira de armar que colocou próxima da área em que o rapaz trabalhava, ele suando em bicas no esforço que fazia para mostrar o quanto era eficiente e forte. Nessa tarde, ele convidou-a para irem ao cinema do bairro na noite de sábado. Hissako aceitou sem refletir e ficaram de se encontrar no local após as luzes se apagarem. Hissako tinha um motivo secreto para arrepender-se da decisão tomada: estava prometida pelos pais a um membro de família amiga – como rezavam os costumes ancestrais. Hissako assombrava-se com a existência, ainda, de tais tradições. A mulher vencia a luta pela igualdade social, os seres humanos conquistavam o espaço, os computadores dominavam o mundo e seus pais, mergulhados em costumes ancestrais, arrumavam-lhe casamento, imiscuíam-se em suas esperanças, ceifavam suas ilusões, determinavam seu destino.
Na sexta-feira Fabrício não veio trabalhar. No colégio, Hissako não conseguiu concentrar-se nos estudos, no almoço mal tocou na comida; à tarde, sentada na cadeira de armar à beira do esqueleto do laguinho, sentia a cabeça explodir com os maus presságios, o peito inundado de temores, conjecturas envolvendo acidentes, atropelamentos, bala perdida, o coração buscando em desassossego uma causa para o desaparecimento de Fabrício. Comeu um pouquinho no jantar, apenas para evitar perguntas embaraçosas dos pais, viu um pouco de televisão junto aos seus, não prestou atenção ao telejornal e nem mesmo à novela que a seduzia tanto, a garganta estava apertada e os olhos teimavam em marejar – levantou-se da poltrona e foi caminhar pelo jardim da residência, aspirando o perfume dos arbustos floridos, dando atenção aos gemidos do vento nos ramos e folhas das árvores, compartilhando com as luzes amarelas dos pequenos postes ornamentais a solidão da alma e a tortura da angústia. Só às dez da noite, com o âmago despedaçado, Hissako adivinhou que a família despedira Fabrício, naturalmente alguém percebera o namorico. Recolheu-se ao quarto, sinceramente desejosa de cair num sono súbito e nunca mais acordar. Sua mãe veio procurá-la arriada na cama, despetalada pela dor. Instigada, confessou sua paixão, admitiu que houvesse errado, tinha plena consciência de que estava prometida a outro homem, era obrigada a honrar as tradições. Mas como é que se dominam os sentimentos? quis saber. A mãe não sabia – mas conhecia na própria carne o sofrimento do amor proibido. Confessou então que passara pelas mesmas experiências. Logo mãe e filha estavam conversando como nunca antes havia acontecido e jamais aconteceria depois. Ao fim, a mãe concordou que Hissako tivesse o encontro com Fabrício no cinema, desde que levasse uma das empregadas a tiracolo para enganar o pai intransigente – com um suspiro revelou que guardava no coração como o momento mais sublime da vida o seu último encontro com um amado proibido sob a árvore frondosa defronte da casa, estava de camisola, era de madrugada, chuviscava e fazia muito frio – ela escapara do quarto pulando pela janela. Riram muito e a mãe a ninou até que adormecesse.
A empregada, italianinha brejeira, nem bem recebeu um dos bilhetes das mãos de Hissako, pôde a seu bel-prazer escolher um rapaz para desfrutar da companhia. Fabrício a esperava perto da cortina vermelha da entrada. Foram para a sala de exibição, ela na frente, escolhendo os dois últimos lugares do canto à esquerda. O público era pequeno, umas cinquenta ou sessenta pessoas espalhadas pelas quase duas centenas de poltronas. Hissako suava nas mãos, na testa e nas axilas, as pernas mal se aguentavam de tanto tremor.
Depois de vinte minutos de espera por um gesto de carinho, um toque de mão, um abraço desajeitado, Hissako viu-se dominada por uma coragem indômita, pela bravura dos antigos samurais, pelo espírito dos pilotos kamicases da Segunda Guerra Mundial – e atacou o namorado. Com as duas mãos enlaçou-lhe a cabeça e grudou seus lábios inexperientes nos carnudos, sensuais lábios de Fabrício. Quando o filme acabou, Hissako tinha os pequenos seios agradavelmente doloridos em razão das massagens feitas pelas mãos calejadas e pelos lábios febris de Fabrício – e sentia entre as pernas a viscosidade da calcinha umedecida com seus sucos íntimos.
Não conseguiram separar-se à saída do cinema, Fabrício levou-a, acompanhados pela empregada, até as proximidades da casa. Despediram-se com o último e desesperado beijo. Quando entrou na residência, tudo era tumulto – o pai a esperava observando da janela e flagrara a cena, foi ao chão vitimado por um colapso cardíaco. Não morreu, mas a quase tragédia formalizou o casamento de Hissako com Ken-iti para dali a dois meses. E determinou-lhe o encerramento dos estudos – vai que o gigante ruivo insistisse na abominável aventura e a perseguisse na escola.