Mar Aberto

Vou aproveitar e vou fazer um café . Não vou muito à cozinha. Nunca tive jeito. Gostaria de ter aprendido a cozinhar. Acho bonito homem na cozinha, mas sabendo o quê está fazendo. É bem charmoso, não é? Um amigo meu faz isso. As mulheres adoram. Pelo menos café eu aprendi a fazer, e até que sai gostoso. Só nunca sei onde está a chaleira. espera. Pronto! Pega um pacote novo de café no armário, Gabriela. Pega o pequeno, o daqui acabou. Espero que goste do meu café.

Então como estava te falando, nós dois sabemos disso. Acabou mesmo. Já passamos por isso outras vezes. Dessa vez tem um peso de nostalgia que afeta tudo. E ela percebe isso. Creio nisso. Tivemos uma fase longa de abatimento. Faltava tudo, afeto, atenção, sexo. Não fui embora nessa época por falta de coragem. Mas agora não teve nada. Chegou assim, como um névoa que toma conta de tudo sem expulsar nada.

Coloquei pouca água. Vai ferver logo. Eu tinha uma maquininha que fazia duas xícaras de café. Era bastante pratico e muito rápido. Deixei cair e quebrou a tampa. Não cria mais pressão. Quando eu for ao centro vou comprar outra... mas então, vejo ela se esforçando, eu também. Essa semana já fomos ao cinema, ao teatro. Final de semana tem viagem. Passamos a viver coisas que há muito não fazíamos. É a ante-sala do desespero. Eu acho. Pra mim está sendo. Uma coisa é acabar, outra é sair de casa e enfrentar a vida de novo. Sabe que já passei por isso e não é fácil. Antes tínhamos brigas. Não acontecem mais. Perdermos a vontade de brigar ou a razão pra isso. Desculpe, Gabi, você pega o açúcar Também acabou. Poderia ser o começo do amor. Não brigar mais. Poderia. Mas não é, porque junto com isso não veio uma sensação boa, parece mais que estou sendo afogado.

Só não falamos do fim. Nem eu nem ela. Sem graça assim, né. Sem uma falta ou uma tragédia. Se pelo menos eu tivesse uma amante e pior ainda, se ela tivesse um. Bem que disso não sei. Sei de mim.

Caramba. Onde estão os filtros? Tinha aqui. Deixa eu ver no armário de cima. Que raiva, olha como montaram alto esse armário. Opa. Ainda bem, tem uns aqui ainda. Ela sempre esconde as coisas. Ta quase pronto, já já você vai tomar meu café..

Sabe uma coisa que me incomoda muito? Não tenho certeza se amo de verdade. Mesmo ela. Isso me assusta . Tivemos momentos de intensos desejos. Mas quando satisfeitos, gosto mesmo é de um bom livro, ou jogar cartas com os amigos. Nenhuma vontade de fazer sala depois do amor. Claro que fazia alguma. Mas me esforçando. Não queria ser chamado de insensível.

Dela não posso dizer muito. Sempre foi muito solitária. Nunca teve muitos amigos. Gosta de ficar em casa, dormindo a maior parte do tempo. Lendo revistas de moda. Final de semana apaga quase o dia todo. Deve ser depressão. Não sei. Fico imaginando muita coisa. A solidão dela me contagia. E eu não posso nem sair. Se ela acordar e não me encontrar, fica de cara amarrada o resto do dia. Não é uma merda isso? Não tem muita saída. O único jeito é ficar perto e com raiva. Não tenho sangue de barata. Hum, o cheiro tá bom, né. Adoro cheiro de café. Lembro de quando criança, acordava com esse cheiro pela casa. A mesa cheia de coisa gostosas pra comer. Era muito muito bom!

Bem, hoje não parece, mas acho que tenho muito medo de perdê-la ainda. E não sei se esse medo ainda está aqui ou estou tentando parecer moderninho. Ultimamente não estou sofrendo muito. Uma colher de açucar tá bom? Eu quero duas. Adoro açúcar.

Ontem ficamos no shopping quatro horas. Meus pés queriam explodir. Nunca fiz isso quando éramos felizes. Por quê faço agora que já não tenho tanto prazer perto dela. Só pode ser medo. E o jantar? Maravilhoso. Deveria estar exausta, mas foi pra cozinha e preparou uma delicia de macarrão. Serviu com vinho tinto. A gente ficou inebriado, rimos muito, parecia quando no começo tudo era engraçado e divertido. Fomos pro quarto. Ficamos até de madrugada conversando, lembrando de coisas. Estava uma lua bonita. Abrimos a janela e o céu exuberante caia na cama. Meu deus, como queria ainda estar apaixonado. Era a mesma lua, o mesmo céu, os corpos. O gosto de vinho ainda na boca. Ela dormiu cantarolando baixinho, não era pra ser lindo isso? Nem parece que acabou. Olhei com tanta vontade pra noite. Achei um desperdício tanta estrela no céu. Quer biscoitinhos de polvinho?

Tem andado bonita. Saiu há pouco. Foi fazer a unha. Mais cedo, logo depois do café da manhã, eu estava deitado e ela no espelho. Fazendo vários penteados. Cada vez que terminava um, olhava em minha direção. Eu fingia não ver. Passou a mão no rosto, pouco creme. Afastou do espelhou. Até que estava engraçado. Segurou a cintura inclinando pra lateral, levantando uma das pernas. Cansou e foi tomar banho. Abri os olhos e não conseguia pensar em nada. “Vamos pra sala?!” Deu só uma saudade afiada. Falta dela mesmo. Porque esses pequenos momentos sempre tivemos. Coisas simples e engraçadas , mas carregadas de significados, mágicas até.

Ah, me lembrei do dia que saímos e pegamos chuva. Ela ficou com frio e passei muito tempo tentando secar sua pele com minhas mãos molhadas. Estávamos os dois encharcado e eu tentando enxugar. Ela me disse que foi uma das coisas mais românticas que já aconteceu com ela. Estávamos junto há pouco tempo. Fiquei tocado com suas palavras. Foi a primeira vez que dormir na casa dela. Vesti uma camiseta de seu irmão e ficamos na sala, deitados num cochonete, rindo durante toda a madrugada. Nesse dia fiquei sabendo muita coisa dela. Coisas antigas, da infância que ainda machucavam. E me falou de seus amores. Poucos amores. Muitas coisas ficaram naquela noite. Confundo esse dia com a imagem que tenho dela, de tão intenso que foi. Pode colocar a xícara aqui.

Nos últimos meses tem se esforçado demais pra agradar e isso só faz acelerar. Jantares que há muito não tinha. Bilhetinhos na cama. Tem um gosto de mentira esse tipo de coisa. Queria mesmo era mandar ela parar com isso e deixar o curso natural das coisas. Só faz eu me sentir culpado em colocar o fim. Eu acredito que acabou também pra ela. Só não tem a mesma frieza. Quer mascarar as coisas. Mulheres! São tão magicas né, gabriela.

Por uns dias fiquei encantado. Quase esqueci os anos de frieza. Essa casa era uma geledeira. Uma má vontade com tudo. Um ressentimento exagerado. Uma raiva surda. Até sem motivos. Agora esse doce, essa manha. O cuidado todo. Parece real. Esse comportamento dela me deixa mais assustado que amoroso. Amor brotando do nada assim. Onde estava esse afeto todo. Pra quem estava indo. É melhor eu nem ir tão fundo. Acho que você não gosta de café!

Ariano Monteiro
Enviado por Ariano Monteiro em 17/03/2011
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