Smell

E por onde foge cada sentimento de compaixão, piedade, simpatia que deveria estar ali? Era a pergunta que aquela pobre garota se fazia. O que ela deveria sentir? Como se aprende a sentir quando ninguém lhe ensina?

- Pobre de mim, Ane, ele me largou e ... – como ela deveria ajudar? – e ontem eu o vi com aquela garota e... – a amiga aos prantos e seu colo e a vida passando e ao olhar para os lados a única coisa que conseguia imaginar eram quantas pessoas mais estariam perdendo seu tempo com essas tristezas passageiras. Quando terminou esse pensamento, Ane percebeu que a amiga estava em silêncio.

- O que foi?

- Perda de tempo? É essa a sua opinião sobre o meu sofrimento?

- Insignificante. O que eu acho é insignificante. Você só dá ouvidos à própria dor – disse, relativamente alheia tentando contar quantas pessoas teriam respondido da mesma maneira.

- Não diga isso, você é minha amiga, é importante para mim, saber o que acha.

- Claro, claro. É importante para você ter um ombro amigo, um ouvido paciente e uma boca que não emita mais do que exclamações monossilábicas de concordância e compaixão. – a calma de Ane deixava sua amiga cada vez mais assustada, ela tinha tanta certeza de estar sendo reprimida. – Mudando de assunto, você já reparou no cheiro que as coisas exalam?

- Che-cheiro? – Pronto, agora a amiga já não entendia se estava sendo repreendida, não se lembrava de ter terminado o namoro e se confundia com esse novo assunto.

- Isso, cheiro, tudo a minha... nossa volta tem um perfume diferente.

- Ok... então aquela garotinha correndo tem um cheiro diferente do de uma criança qualquer suada de brincar na terra?

- Sim, aquela garotinha ali cheira a gaiola de passarinho capturado que fica fazendo sujeira e cantando seu lamento o dia todo.

- Faz algum sentido, eu acho. E eu, Ane, cheiro?

- Você cheira forte àquele tipo de queijo apreciado pelos excêntricos, sabe? Daqueles que tem gosto amargo, parecem inconsumíveis, mas não fazem mal. – pela cara com que o comentário foi recebido, Ane percebeu que havia dito a maior das injúrias.

- Queijo podre? Não acredito. Você deve cheirar a rosas então, imagino.

- Não, eu cheiro a covardia, criança com medo de escuro, cor amarela, cor dos fracos...

- Mas você não é fraca, An, você é uma das...

- Não, não sou uma das pessoas mais corajosas que você conhece. Eu só tenho palavras e as uso para aproximar ou distanciar quem eu quero. E antes que me pergunte como eu escolho... bem, com os perfumes eu vejo o que pode me fazer mal ou não, assim como fiz com você.

Com certa razão, desconhecida para Ane, sua amiga se levantou, se aproximou, projetou a mão espalmada na direção à face que havia lhe dito os desaforos, hesitou e recuou.

- Você está certa, eu não consigo te fazer mal, mesmo que a sua covardia faça com que use palavras que machucam mais que socos na cara. Se quer saber...

- Não, não precisa repetir o que eu escuto de mim mesma por vezes o suficiente. – Ane levantou, ficando assim mais alta que a sua colega. – Na verdade, por mais que tenha uma nota ofensiva, já me acostumei com teu aroma e gosto muito dele agora. E antes que você vire as costas e vá-se embora indignada...

E ela não sabia se havia algum sentimento ali, ou se era apenas uma maneira de se provar não ser covarde, ou se era tudo falso e apenas um impulso, ou o que quer que fosse.. Ane apenas prendeu a respiração para não sentir a sua covardia e beijou sua amiga. Logo depois virou as costas e caminhou devagar na direção contrária, deixando para trás um perfume tão confuso quanto uma fragrância cítrica quando misturada à uma adocicada. E carregando todas as suas certezas...

- Ei, sua covarde! Volte aqui, seu cheiro horrível ajuda a disfarçar a minha podridão inofensiva.

Essa história não tem, necessariamente, um final feliz.

Eduarda Daibert
Enviado por Eduarda Daibert em 14/03/2011
Reeditado em 15/03/2011
Código do texto: T2848649
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