Um Cara e Uma Coroa

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HÁ CASAIS QUE expõem sua felicidade de tal forma que se torna até uma felicidade contagiante. E Saulo e Mônica eram desses tipos de casais. Sim, aos 15 anos, eles exalavam aquela paixão adolescente para todos que quisessem ver. Se você, por exemplo, passasse por eles diria: “Nossa, que casal alegre!Por que não posso ser feliz que nem eles?”. A resposta é simples: Você não tem mais 15 anos. Ou tem e não sabe aproveitar essa idade maravilhosa sem fazer uso de muitas responsabilidades.

Falando em responsabilidade, isso era algo que faltava nesse casal. Nesse dia em especial, os dois matavam aula, por exemplo. O professor de química havia se hospitalizado às pressas, após ter ingerido um daqueles cachorros-quentes de rua, vulgo podrões, fazendo-o ter uma diarréia brava! Porém, a diretora da escola no mesmo dia conseguiu um professor substituto para a turma, afinal, as provas finais se aproximavam. Mas aos quinze anos, você não tem muita noção da falta que uma aula perto das provas finais pode fazer.

Ao invés de estarem na sala de aula, os dois caminhavam alegremente pela Praça Afonso Pena, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Passeavam cantando, sorrindo, e debochando de pessoas na rua. Debochavam dos idosos que andavam lentos demais. Debochavam do grupo de EMOS que se emocionavam e pintavam-se demais. E debocharam até de um cara que estava quieto encostado num poste, parecendo se esconder de alguém, ou sei lá, observar alguém. Ao passar por ele Mônica empurrou Saulo na direção do rapaz. Esse, parecendo concentrado, apenas pediu desculpa, e continuou olhando para frente.

O casal sorriu, e mais a frente, já estavam debochando de um casal de gordinhos que pareciam discutir a relação sentados na escada da porta principal do Esporte Clube América, ali perto da Praça. Saulo e Mônica pararam propositalmente e ficaram encarando os dois. Pela leitura labial, podiam ver que o rapaz se desculpava, dizia que não faria de novo, e que até mesmo perderia peso por ela. A menina, na réplica, chegou a dizer algo como “Seu Playstation parece mais importante que eu!” e “Não sei se você me namora ou se namora os soldados do Call Of Duty!”, fazendo referência a um jogo de guerra de Playstation muito querido por Nerds.

O casal feliz não conseguiu segurar o riso. Saíram sorrindo e debochando de mais pessoas pela frente. Eram escrotos por natureza, e felizmente, essa história não narra alguma parte da vida de Saulo e Mônica, que duas semanas depois se separariam e nunca mais se encontrariam na vida. Saulo virou traficante de drogas e morreu após atirar num soldado do BOPE, e Mônica se casou com uma mulher que a trocou por um homem. Essa história também não fala do casal de gordinhos que, após discutirem a relação namoraram por mais dois anos, se casaram, tiveram três filhos homens, perderam peso, e, aos trinta anos, ganharam juntos o prêmio de cem milhões na Mega Sena. Essa história fala daquele rapaz escondido atrás de um poste, e que passara despercebido pelo casal escroto. Essa é a história de Yuri, um cara comum.

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YURI PARARA EM frente ao poste às nove da manhã, e ali ficou por trinta minutos até ser esbarrado por um casal de adolescentes que nunca havia visto na vida, mas que aparentavam serem escrotos pra caramba. Após ser esbarrado, voltou mais um pouco para sua posição anterior, e ficou por mais dois minutos. Seus olhos estavam fitando a segunda janela do terceiro andar de um prédio na Rua Campos Salles. O prédio era pintado em um tom azul-blusa-de-trocador-de-ônibus e possuía grades altas, devido ao crescimento da violência na Tijuca.

Parecia esperar algo, e já começava a atrair a atenção tanto dos moradores, como dos comerciantes e pedestres. No mesmo prédio, havia uma senhora que fumava um cigarro a cada vinte minutos na janela. Assustou-se ao notar que o rapaz, após seu quinto cigarro, ainda se encontrava atrás do poste, olhando para a janela em cima da sua. Mas ela não fez nada, queria acabar de fumar seu cigarro e voltar dali a dez minutos. Mas de repente, os olhos de Yuri brilharam. Passando pela portaria, apoiada em uma bengala, saiu Dona Magnólia. Uma senhora de sessenta e seis anos, moradora do prédio e que havia acabado de perder seu marido, companheiro de trinta anos.

Yuri devagar atravessou a rua e se aproximou do prédio lentamente.

-Eu vou ali à padaria, Agenor!Acho que esqueci minha chave lá. Se o moço da tv à cabo chegar, peça que me espere.- pediu ela ao porteiro.

Assim que ouviu o sinal da porta que mostrava que o porteiro a havia aberto através de um botãozinho na sua mesa, ela puxou a porta de ferro com uma das mãos, e a empurrou um pouco com sua bengala. O problema é que olhando para a porta, ela não viu um paralelepípedo bem na sua frente, e tropeçou nela... Mas não caiu, pois como que Super-Homem, Yuri se jogou para perto dela e a confortou em seus braços.

Dona Magnólia demorou um pouco para perceber o que estava acontecendo, porém logo que sua vista se recuperou, ela pode ver uma rapaz moreno a segurando em seus braços fortes. Num primeiro instante ela ficou tentada a gritar ASSALTO! No segundo, ainda sem entender a situação, pensou em gritar a todos pulmões ESTUPRO! Pois alguns dedos de quem quer que fosse que a segurava, encostavam-se a seus mamilos, mas assim que viu a pedra bem perto de seus pés enrugados, ela sorriu.

-Obrigado, Jovem. - agradeceu enquanto tentava se equilibrar de pé.

-De nada! Quando vi que a senhora estava se desequilibrando... Corri o mais rápido que pude!- explicou Yuri soltando-a após ver que já conseguia se manter de pé.

Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes até que ele se despediu. Dona Magnólia ficou o observando se afastar. Sem saber por que, gritou por ele, sendo atendida prontamente.

-Tem como eu te agradecer, querido? Eu podia ter quebrado uma perna e um braço num tombinho desses!...Eu... Eu não o conheço de algum lugar?

-Não... De Jeito nenhum. Não passo muito por aqui. E fico feliz pela senhora estar bem. Não precisa me agradecer não. - desconversou Yuri estranhando o fato de a mulher dizer já o ter visto.

Minutos depois, os dois estavam no Mc Donald’s conversando sobre a vida, o universo e tudo o mais. Falaram sobre infância, sobre trabalho e sobre destino. Em alguns minutos os dois pareciam amigos de infância. Amigos de infância em que um era quarenta anos mais velho que o outro, mas ainda assim, amigos de infância... Estranhos.

Os dois passaram o dia juntos. Dona Magnólia pediu que ele a acompanhasse á padaria. Ele foi de boa vontade.

Por dias passaram dias juntos, e conforme o tempo passava, as pessoas foram notando a relação daquele rapaz com a velha viúva. O porteiro foi o primeiro. Desconfiava de algumas coisas. Talvez ele fosse um ladrão que queria se aproximar da viúva para depois roubá-la. Já a vizinha do apartamento 405, achava que ele seria, na verdade, o espírito do marido falecido da senhora, afinal, um casamento de 30 anos baseado em amor e fidelidade não podia terminar só porque um deles fez a passagem.

No dia em que ela precisou ir ao cardiologista para fazer exames de rotina, lá estava Yuri, às oito da manhã, com um enorme sorriso. Ela sorriu em resposta. Por dentro ela tinha algumas dúvidas, nada em relação ao caráter do jovem. Mas um conflito de sentimentos. A senhora estava começando a se apaixonar novamente. Terminou de se arrumar e encarou a foto de seu falecido marido. Balançou a cabeça e saiu de casa. O dia seria maravilhoso.

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DONA MAGNÓLIA NÃO tivera filhos. Seu marido sofria de um problema que o deixara impossibilitado de gerar filhos. Os dois então optaram pela decisão de viverem juntos, somente os dois. Sentia-se sozinha após a partida dele. Às vezes conversavam com as fotos, com os espelhos, com as paredes. Porém agora tinha alguém que a escutasse. Alguém que pudesse olhar em seus olhos e mostrar que compreendia o que ela falava. Esse alguém era Yuri, que sempre se mostrara interessado nos assuntos, nas histórias que ela contava. Os dois viraram grandes amigos. E aos poucos, depois de muitas dúvidas, os vizinhos pareciam acreditar no amor daquele jovem por aquela senhora quase que quarenta anos mais velha que ele.

No dia vinte de dezembro, aniversário de Dona Magnólia, Yuri organizou uma tremenda festa para ela. Organizou o buffet, os enfeites que lembravam os anos sessenta, década preferida da senhora aniversariante. E as músicas ainda mais animadas embalavam o jardim do prédio. Todos se emocionaram ao ver a reação da senhora. Ela parecia apaixonada. E tiveram a certeza quando, na hora do parabéns, o casal ilustre se beijou. Muitos encararam a cena com certa repulsa, porém a maioria sorriu e aplaudiu. Os dois provaram ali, que o amor não tem idade.

Por seis meses os dois ficaram juntos. E foi então que numa manhã de junho, dois dias antes do dia dos namorados, Dona Magnólia veio a falecer. Todos ficaram surpresos com a morte da senhora que exibia um vigor imenso e se encontrava num dos momentos mais felizes de sua vida, ao lado de seu novo mais novo amor. O porteiro abraçava Yuri. O rapaz parecia desolado. Na noite anterior, ele perguntara sobre o falecido marido de Magnólia. Ela contou-lhe que ele tinha muito dinheiro, que guardava tudo para o dia em que precisasse. Infelizmente ele nunca pode fazer uso de tamanha quantia. Magnólia levou seu namorado até o quarto e abriu uma pequena portinhola escondida sob a cabeceira da cama de casal. Lá de dentro retirou uma caixa de sapatos que abriu cuidadosamente. Um bolo de dinheiro se fez notar.

-Ele nunca usou. E eu nunca precisei disso. Agora lhe dou tudo isso, por você ter salvado minha vida quando eu me encontrava desolada. -agradeceu a senhora, como se previsse o que lhe aguardaria na manhã seguinte.

Os dois se abraçaram.

Yuri se levantou do sofá e se afastou do porteiro. Agradeceu a presença de todos e saiu. Eles nunca mais o veriam.

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TODOS NÓS QUANDO nascemos, somos presenteados com algum tipo de dom. Esse dom poderá ou não ser desenvolvido, e fazer de nossas vidas experiências menos dolorosas e difíceis que as vidas dos demais ao nosso redor. Há pessoas que viram grandes atores sem nunca terem estudado interpretação. Viram grandes pintores sem nunca terem feito curso de pintura e artes, e às vezes, sem ter ao menos mãos para segurar os pincéis. Grandes empresários, grandes líderes públicos, grandes escritores. E há pessoas que nascem com grandes poderes, como os de, por exemplo, prever o futuro. Se você tivesse o poder de prever o futuro, a primeira coisa que você, assim como noventa por cento da população que pensa nessa hipótese, seria adivinhar os números da Mega Sena, correto? Pois é, mas e se a Mega Sena for algo frio, que não envolveria nada, tipo sentimentos? Você ganharia e pronto. Mas não poderia ganhar muitas vezes, ninguém é sortudo para ganhar mais de duas vezes no sorteio. E Yuri pensava assim.

Nascido de família pobre, desde os oito anos, o menino notou que possuía um dom espetacular. Ele podia prever o que aconteceria não só com ele, mas com as pessoas que ele tocasse. Assim, foi acumulando prêmios em apostas, em jogos, e até mesmo de outras pessoas. Certa vez, numa feira pública, ele esbarrou em uma senhora que comprava uvas. Pode ver o sofrimento que ela sentia. Parecia ter perdido alguém, e que em breve também deixaria o mundo. A angústia daquela senhora abriu o coração frio de Yuri. Por outro lado também, ele viu que ela possuía uma enorme quantia em dinheiro, e que deixaria para aquele que estivesse ao seu lado.

Sua mãe era fria, e se aproveitava do dom do filho. Só que, com o dinheiro ganho, ela gastava metade em bebidas alcoólicas, e isso irritava seu filho. Mesmo que usasse seu dom para enganar as pessoas, Yuri estava vendo que seu dom estava destruindo sua própria mãe. E ele resolveu se afastar por algum tempo. Foi quando resolveu encontrar a senhora que esbarrara na feira. A encontrou na Tijuca, fora até a padaria, pegara sua chave... E viu no momento em que esbarrou nela, que ela iria tropeçar em uma pedra. Foi a deixa para salvá-la, virar seu herói. Estranhou o fato de ela parecer ter o reconhecido apesar da idade. Estava disposto a ajudá-la, e por fim. Segundo suas contas, dois meses depois, ele ficaria com suas finanças, pois ela faleceria.

O problema é que se passaram dois meses e a senhora não faleceu. De algum modo, encontrar um novo amor a rejuvenesceu. Nela, Yuri encontrou uma mãe que nunca tivera. Pensou até em falar de seu dom, mas não conseguiu. Ficou triste. Sentiu-se péssimo por ter enganado tal senhora. Mas sabia que gostava dela, então a mentira não era tamanha.

Fugiu com o dinheiro e nunca mais foi visto. Mas passou a usar seu dom para benefício não só seu, mas dos outros. Pois apesar da idade, apesar das diferenças, um conseguiu mudar o outro. Tanto o cara, quanto a coroa.

FIM

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 14/03/2011
Reeditado em 14/03/2011
Código do texto: T2848548
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