O Sonhador Fleumático e Melancólico

Àquele tempo eu ainda não sabia o que era ser sonhador, fleumático e muito menos melancólico, apenas vivia feliz devido às circunstâncias. Era um fedelho de 15 anos, apaixonado por Francielle. Com seus olhos esverdeados, cabelo louro escuro, pele morena do sol, lábios carnudos e curvas exuberantes. Mesmo com seus 13 anos de idade, ela era bem bonitona. Dir-se-ia que ficaria mais bela quando chegasse aos 16, 17. Enquanto eu, mirradinho, pele e cabelos queimados, estropiados, porque vivia jogando bolinha de gude e empinando pipa o dia todo embaixo no sol quente ou então, caçando passarinhos com estilingue nos matagais. Imaginem um moleque maloqueiro que não sabia se arrumar e de condição social baixa. Ora, meu pai trabalhava para sustentar quatro pessoas e não ganhava bem, enquanto o pai dela tinha um salário alto. Eu não possuía uma bicicleta usada, ela já tinha uma Scuter naquela época. Ou seja, a nossa condição social era uma barreira para que nosso amor fluísse.

Chegou a ser estranho e patético, olhando com o pensamento maduro deste momento, quando pedi para o Sr. Geraldo com toda naturalidade do mundo, claro que com os lábios brancos pelo nervosismo e imaturidade, afinal, era a minha primeira vez a fazer aquilo, mas muito certo de mim, que me deixasse a namorar sua filha, porque eu me entupia de Biografia e creme a fim de parecer menos plebe, coisa que só denunciava minha ignorância e condição.

Rosana, mãe de Francielle era loira e bem bonita para a idade e seu marido, do tipo de pessoa pra cima, que vai à linha de frente e faz acontecer; a humildade era seu ponto forte; carismática e evangélica, ela possuía muito amor pela obra de Deus.

Depois de algum tempo que meu relacionamento com Francielle havia terminado, fiquei sabendo por uma crioulinha que ficava nos espionando da janela do terceiro andar quando namorávamos, certamente com pena de mim, que contara não sei pra quem e que chegava aos meus ouvidos naquele noivado de uma prima que Francielle me traíra com o filho do síndico do prédio, um burguês de pinta, causador de muito ciúme contido em mim, pois nunca fui de revelar este tipo de sentimento. Aquilo me machucou demais. Um rapazola de 15 anos sabe muito bem o que é a dor de ser traído, trocado por mera leviandade (pelo menos eu soube). E aquilo doeu muito, muito em meu coração, porque, afinal de contas meu amor por ela era verdadeiro e puro assim como meu corpo. Sempre almejei a felicidade dela.

Naquele tempo eu odiava a mentira. Não conseguia enganar ninguém por qualquer coisa à toa imaginem por causa das sérias? Por isso, já não fazia nada de errado, e se fizesse, chorava ao contar a verdade tal era o arrependimento. Saber que fui enganado, traído enquanto eu me dava em cem por cento de meu coração me marcou para o resto da vida.

Francielle tinha o costume de dizer que vinha ao meu encontro e não aparecer. Aquilo me deixava possesso. Por que mentir? Por que marcar um compromisso que não pode ser cumprindo? Hoje, confesso-vos que, meu processador não é tão inflexível, por isso costumo aceitar a mentira como se fosse algo que não posso lutar contra, talvez tenha me tornado sujo ao fazer o mesmo como manda meu temperamento.

- Deus vai preparar uma de vocês e irá levá-la para a Glória. Uma irmã do Círculo de Oração profetizou certa feita, enquanto elas oravam de portas fechadas como faziam todas as segundas-feiras.

As irmãs ficaram com medo de morrer e perguntavam uma para outra “sou eu? Sou eu?” Como não havia nome na profecia, ninguém soube, no momento, quem era a pessoa. Afinal, não é legal ter a convicção de que se vai falecer tal dia e tal hora. Melhor a incerta nesses momentos que a certeza do rei Ezequias¹. As pessoas vivem a vida sem pensar na morte e ela simplesmente aparece e nos leva para o desconhecido. Só então os entes queridos sentem a perda e o aperto fúnebre no coração causado pela imensa saudade.

Seu Francisco, meu pai, era o Superintendente da Escola Dominical daquele ano que se passou e incumbiu o cargo para Rosana, enquanto, ele, dava as aulas bíblicas para os irmãos, ela coordenava com esmero o trabalho todo. Como Rosana era talentosa, trabalhadora, amorosa com a obra e com seu discipulado a Escola Bíblica Dominical cresceu muito e todo mundo viu a ascensão de ambas. Realmente... ter alguém que ame uma obra difícil igual aquela é ter um espelho para a vida.

Mas, no fim daquele ano recebi uma notícia que me entristeceu muito. Geraldo decidiu que iria se mudar para o Rio de Janeiro com sua família. Aquilo me abalou demais, porque todos os natais meus primos, amigos, Francielle e eu fazíamos peças juntos e era uma verdadeira diversão e aprendizado. Àquele ano eu havia feito o papel do endemoniado Gadareno² e tinha ficado muito bom, porque deixei a barba e o cabelo crescerem e fiz uma verdadeira pantomina³ que até uma prima minha teve medo, pois se escondeu embaixo do banco pensando que eu realmente estava possuído por espíritos malignos e o público me aplaudiu, gostando mais do meu papel que o de Jesus, como se eu fosse o Coringa da história e Jesus, representado por meu primo, o Batman.

Meu Natal foi tristonho. Mudo. Meu amor estava indo embora. Até aquele momento eu poderia vê-la na igreja, esperá-la, ficando à espreita quando voltasse do colégio e dar ao menos um sorriso para ela. Infelizmente isto nunca mais aconteceria. Geraldo se mudou com sua família e os irmãos da igreja fizeram festa, oraram para que Deus os protegesse e os abençoasse.

No dia primeiro do ano recebi uma notícia tristíssima: Rosana havia falecido com um ataque fulminante. A profecia havia se cumprido. Toda a congregação foi para o sepultamento daquela mulher tão dileta. “Como será que a Francielle está?” Eu me perguntava desesperado. Minha melhor amiga Jose via a sofreguidão em meus olhos:

- Não fique assim, Francielle não está nem pensando em você neste momento.

- Mas eu não quero o mal pra ela. Você acompanhou o nosso caso e era amiga dela também, pô! Será que não pode sentir um pouco de compaixão pelo menos? E ainda por cima – complementei – eu gostava muito da Rosana mesmo ela sendo perfeccionista.

- Põe na cabeça que a Francielle lhe rejeitou, não olhou para trás e nem escreveu uma maldita carta pra você. Sabe por quê? Porque ela não tá nem aí.

Jose não estava errada em suas palavras, mas mesmo assim eu queria dar um abraço apertado em Francielle já que não conseguiria lhe dizer nada de ânimo ou consolo, talvez para dizer no silêncio do amplexo “eu lhe entendo e perdôo, estou aqui contigo, não fique assim, por favor”. Quando houve a mudança nem minha amiga e nem eu soubemos da maldita traição. Sobre ela eu só vim saber depois e até hoje não posso afirmar se realmente aconteceu. O que sei é que senti todo aquele turbilhão de sentimento. O perdão a que me refiro é sobre o desdém e pouco caso dela em relação a mim.

Após 10 anos deste episódio, eu estava muito triste por causa de perdas mil, cheguei para minha mãe e lhe disse depois de tê-la abraçado fortemente tal era minha carência. A princípio procurou se esconder de meu amplexo atrás de um sorriso dissimulado e cético pelo fato de eu estar sempre brincando com tudo e todos. Ela não queria e não iria oferecer o armário que seria jogado fora a uma pessoa que precisava muito, minha mãe tinha mágoa deste alguém. Sutilmente entrei em um assunto primeiro até chegar ao ponto que realmente desejava.

- Eu faço tantas coisas erradas contigo. Mesmo assim a mãe me ama e me perdoa sempre...

- É claro que sim! Você é meu filho.

- Ou seja, é um amor incondicional. Complementei na convicção do pensamento de meu coração.

Minha mãe confirmou o que eu já sabia. E eu disse – isso tudo por causa de um armário que iria dar mais conforto para alguém que na mente dela não merecia:

- É por isso que o meu temperamento é fleumático e melancólico. – Com certeza ela não entendeu esta expressão que usei, porque me referia aos quatro temperamentos humanos: sanguíneo, colérico, fleumático e melancólico no qual o ser humano nunca possui um só. – As pessoas deveriam amar incondicionalmente, – continuei – mas isso não acontece, pois é do ser humano. Eu disse isto com grande pesar, porque meu coração doía à beça, só que jamais poderia revelar esta pungência para minha mãe, ela poderia ficar mais magoada ainda com a pessoa que eu pedia e me deixara naquele estado. Com jeito e delicadeza, pois a conhecia muito bem, roguei para que ela desse o bendito armário. Claro que a resposta foi um não grande.

- Quando eu gosto da pessoa eu gosto, quando eu não gosto, não gosto, Jessé. Ela me respondeu curta e grossa como eu já esperava.

- Mas o certo seria as pessoas se amarem independente do que uma fez para outra. Do que vale o amor sem o perdão? Será que realmente existe amor sem misericórdia?

Aí minha mãe deu o argumento radical dela:

- Isso não existe seu bobo! Quem faz isso é louco! Porque quando uma pessoa magoa a outra, a pessoa magoada quer distância e não quer mais nem ouvir o nome do fulano. E tem mais: jogo fora o armário, mas não dou porcaria nenhuma para essa fulaninha que disse. Ela se referia a Rosália, meu grande amor do momento que fez a mesma coisa que fizera Francielle no pregresso distante.

Então, abaixei minha cabeça com uma dor inconfundível no peito. Aquela dor que só quem ama sente. Pensei em meu passado e em todas as pessoas que amei e perdoei justamente por ser fleumático e melancólico, ou seja, refiro-me a uma característica boa desses temperamentos: ter mais facilidade, no caso, de perdoar; virei às costas e, de costas para minha mãe, respondi com a voz embargada, mas não tentando demonstrar meu estado, relembrando da traição de Rosália, minha ex-paixão e amor (havíamos rompido e eu continuava amando), porque quem perdoa não esquece quem lhe feriu, porém não volta a se lembrar com pesar na alma, meu desejo genuíno de vê-la feliz, na mágoa que ela sentia por mim, – sendo que o maior machucado fora eu –, sua incapacidade de perdoar e respondi com a voz dissimulada, porque a dor e o amor puro, poderoso em perdão que eu sentia eram muito mais do que verdadeiramente demonstrava com meus gestos sôfregos e lânguidos:

- Então eu sou um louco, minha mãe. Um louco... Esta segunda vez saiu quase que inaudível. E subi as escadas de casa com a cabeça baixa. Dentro da alcova chorei sozinho como sempre fiz.

12/02/2011 15h05

NOTA: Ezequias¹: pela Bíblia (2 Livro de Reis capítulo 20.1-11), rei de Judá que foi sentenciado à morte por Jeová através de uma profecia de Isaías. Ele ora a Deus e o Senhor lhe dá mais quinze anos de vida.

Gadareno²: pela Bíblia (São Marcos 5.1-20), um homem possuído por uma legião de demônios. Jesus expulsa os demônios do homem e eles entram numa manada de porcos que se atiram ao mar.

Pantomina³: não no sentido de gesticular exprimindo sentimentos ou intrujice, mas num sentido mais periférico, e de um pequeno grupo de pessoas, usado na forma de gíria que significa: fuzuê ou bagunça.

Cairo Pereira
Enviado por Cairo Pereira em 13/03/2011
Reeditado em 16/03/2011
Código do texto: T2846017
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