Diário de um adolescente
No armário do quarto da velha casa que comprei havia um baú. Caixa de lápis, apontador e um invólucro de plástico duro que guardava, hermeticamente fechado, alguns cadernos. Abri com cuidado e quando comecei a ler as letras amareladas, senti um arrepio, como se estivesse violando intimidades.
Muitas páginas já estavam ilegíveis, mas as que estavam preservadas guardavam um tesouro. Tratava-se do diário de um adolescente, algum rapaz que não tinha a quem confessar seus problemas e apreensões e que resolvera transportar para o papel as suas confidências.
Minha consciência selecionou algumas jóias que mereciam serem mostradas, outras eram tão íntimas que resolvi não expô-las.
Conforme lia, levantava em mim questionamentos de como podemos ignorar o quanto os problemas de um casal impactam nos jovens, como eles são afetados pelas brigas em família, pelas crenças dos adultos que nem sempre são corretas, pela política e religião.
Vamos agora mergulhar neste mundo mágico e imaginar todas as emoções que dominaram o ambiente em que vivia o jovem F.F.
13/10/1960 – Hoje é um dia muito especial porque é véspera do meu aniversário. Sou um libriano e dizem que por isso gosto muito de falar, de me expressar pela palavra. Será que é verdade ou somente um mito? Amanhã completarei catorze anos e minha mãe certamente vai preparar um bolo e convidar meus primos e amigos. Mas até agora ninguém comentou nada... Será que ela esqueceu? Gostaria que a Marli também viesse, mas eu sinto vergonha de convidá-la, afinal nem sei se haverá bolo... Existe também a possibilidade de convidá-la e ela não querer vir, aquela estória de não querer mostrar para a família que está sendo paquerada por um garoto mais novo que ela... No aniversário de dezesseis anos do meu irmão, em maio, fizeram um “hi fy” com música à meia luz... Tenho receio de que mamãe queira fazer igual ao aniversário do meu irmão quando terei que dançar o que não é o meu forte e tenho medo de dar vexame. Afinal, eu e meu irmão somos muito diferentes, no fundo eu invejo a ousadia dele, mas pensando melhor, nem sempre ele se dá bem.
Hoje voltei ao meu ponto de observação para ver a Glorinha de baby doll, mas só vi o pai dela lendo jornal e fumando cachimbo. Dei-me mal...
15/10/1960 – Recuso-me a falar do meu aniversário. Mamãe fez o bolo e convidou minha tia, meus primos e até a Marli. Alguns já haviam chegado, mas papai aprontou novamente e roubou a cena. Desta vez ele estava completamente embriagado. Ponto final, não direi mais nada, acabou a festa dos meus catorze anos, fiquei arrasado e furioso, fui para a casa da minha tia. Não falarei mais no assunto, a festa acabou. Outubro é mês de eleições e Jânio foi declarado eleito, agora é a vez da UDN de dirigir o país. Será que ele varrerá a sujeira da política nacional como promete ou continuará colocando o lixo debaixo do tapete?
Estão surpresos por um garoto de catorze anos falar de política? Na minha casa respira-se política, meu avô foi prefeito por três mandatos na minha cidade e aqui só se fala de política. De política e de meu pai beberrão.
Em tempo: Glorinha ontem à noite estava de baby doll, amenizando o fiasco da festa. Festejei no banheiro!
28/10/1960 – Deu o maior quiproquó da paróquia. Meu irmão saiu com a lambreta do meu tio malucão e até dez horas da noite não havia retornado. Meu tio estava possesso e meu pai, depois de algumas cervejas, tomou as dores do meu irmão afirmando ser muito natural o rapaz querer dar umas voltinhas com as meninas. Minha mãe foi dizer que meu pai era mais irresponsável que o filho e o tempo esquentou. O clima lá em casa está ficando cada vez mais tenso e eu voltei novamente para a casa da minha tia. Quando acabar a bebedeira eu voltarei. Ou não?
PS – Minha prima usa calcinha de renda preta. Linda!
12/11/1960 – Minha mãe foi convocada pela diretora da minha escola. Motivo: eu e meu irmão estamos com rendimento abaixo da média. Tremendo vexame, todo mundo ficou sabendo da nossa situação, mas o pior foi a bronca da minha mãe:
- Vocês querem se tornar adultos iguais ao seu pai?
Poxa, pegou mal...
17/12/1960 – A professora de apoio foi muito dura conosco, mas tanto eu como meu irmão conseguimos passar de ano. De raspão, mas passamos. Agora o que importa são as férias, muita bola e chute nas canelas.
Meu irmão descobriu o meu ponto de observação e espalhou pra todo mundo que eu estava de olho na Glorinha. Fiquei muito invocado, ele havia aprendido muito bem as manhas de nosso pai...
22/12/1960 – Na casa de minha tia fazem culto espírita. Dizem que minha avó é vidente e nas reuniões das quartas feiras ela se dirige aos espíritos perturbadores, doutrinando-os. Diz que são os companheiros espirituais do papai. Serão doidões desencarnados? Acho que eles não ligam muito para as preleções dela e preferem a companhia do meu pai... Fico muito assustado com estas sessões, prefiro ir para a casa da minha tia nos outros dias da semana. Nesta vez aconteceu que cochilei durante o culto e o meu primo me deu um safanão para que acordasse, imaginei que estivesse possuído... Sai de mim Belzebu!
24/12/1960 – Véspera de Natal e dia de sol, tudo de bom. Eu e meu primo fomos à praia da Urca. Foi difícil arrumar um lugar na areia. Os ônibus Lins-Urca e Central-Urca, estes apelidados de Camões porque pareciam ter um só olho, despejavam cada vez mais gente na praia. Umas meninas se engraçaram conosco, mas a tia delas chamou a nossa atenção. Velha mal amada, que não permitia que as meninas se divertissem, acabou com nosso barato. Voltamos para casa, vermelhos como siris. Em casa, o velho dormia como peru em véspera de Natal, mamado...
28/12/1960 – Não gosto de datas festivas, elas são comemoradas com muito álcool, as pessoas confundem alegria com abuso e acabam causando decepção. Não comemoramos o Natal, nenhum amigo ou familiar aceita ir a minha casa, nem ninguém nos convida para suas festas. Somos discriminados por causa do comportamento do meu pai. O único que aparece e não se importa é o meu tio malucão , irmão da minha mãe, acredito até que seja para protegê-la, suponho que ele tenha medo de que ela seja agredida, embora eu acredite que esta hipótese seja remota pela índole pacífica de meu pai... Mas prevenir nunca faz mal.
No dia vinte e seis fui com meu irmão à casa da minha tia. Minha avó e sua irmã estavam junto ao rádio ouvindo a pregação do Alziro Zarur, da Legião da Boa Vontade. Em determinado momento, ele conclamou que todos fechassem os olhos e fizessem uma oração, quando todos os pedidos seriam atendidos. Sobre a mesa dois copos de água, um da minha avó e o outro da minha tia avó para serem abençoados. Quando as velhas fecharam os olhos para orar, aproveitei e coloquei uma pitada de sal de frutas no copo da minha avó. Quando ela abriu os olhos e viu a água efervescente, agradeceu:
- Fui beneficiada, Graças a Deus!
A outra retrucou:
- Esqueceram de mim!
E minha avó disse a seguir:
- É porque você não tem fé, mulher!
06/01/1961 – Ano Novo, vida nova! Num ímpeto de ousadia, fiz um verso para Glorinha, chama-se Bilhete.
BILHETE
Quisera ser um ourives da palavra,
Do pensamento um artista, artesão,
Para fazer somente de minha lavra
Um tesouro e colocar em sua mão.
Mas perdoa-me, querida, não sou capaz
Deste tesouro, poder lhe oferecer.
Apenas sou um poeta contumaz
Fazendo tudo por seu amor merecer.
Em você, sintonizo a alegria
De viver em permanente satisfação.
Com você eu teria noite e dia
Uma vida só de amor e perfeição.
Seja breve e me responda, por favor,
Livrando-me de tanta ansiedade,
Quando eu poderei viver com seu amor
Acabando de vez com esta saudade?
Mas é uma pena, a mesma ousadia que tive em escrever o verso, faltou-me na hora de me declarar a ela.
No armário do quarto da velha casa que comprei havia um baú. Caixa de lápis, apontador e um invólucro de plástico duro que guardava, hermeticamente fechado, alguns cadernos. Abri com cuidado e quando comecei a ler as letras amareladas, senti um arrepio, como se estivesse violando intimidades.
Muitas páginas já estavam ilegíveis, mas as que estavam preservadas guardavam um tesouro. Tratava-se do diário de um adolescente, algum rapaz que não tinha a quem confessar seus problemas e apreensões e que resolvera transportar para o papel as suas confidências.
Minha consciência selecionou algumas jóias que mereciam serem mostradas, outras eram tão íntimas que resolvi não expô-las.
Conforme lia, levantava em mim questionamentos de como podemos ignorar o quanto os problemas de um casal impactam nos jovens, como eles são afetados pelas brigas em família, pelas crenças dos adultos que nem sempre são corretas, pela política e religião.
Vamos agora mergulhar neste mundo mágico e imaginar todas as emoções que dominaram o ambiente em que vivia o jovem F.F.
13/10/1960 – Hoje é um dia muito especial porque é véspera do meu aniversário. Sou um libriano e dizem que por isso gosto muito de falar, de me expressar pela palavra. Será que é verdade ou somente um mito? Amanhã completarei catorze anos e minha mãe certamente vai preparar um bolo e convidar meus primos e amigos. Mas até agora ninguém comentou nada... Será que ela esqueceu? Gostaria que a Marli também viesse, mas eu sinto vergonha de convidá-la, afinal nem sei se haverá bolo... Existe também a possibilidade de convidá-la e ela não querer vir, aquela estória de não querer mostrar para a família que está sendo paquerada por um garoto mais novo que ela... No aniversário de dezesseis anos do meu irmão, em maio, fizeram um “hi fy” com música à meia luz... Tenho receio de que mamãe queira fazer igual ao aniversário do meu irmão quando terei que dançar o que não é o meu forte e tenho medo de dar vexame. Afinal, eu e meu irmão somos muito diferentes, no fundo eu invejo a ousadia dele, mas pensando melhor, nem sempre ele se dá bem.
Hoje voltei ao meu ponto de observação para ver a Glorinha de baby doll, mas só vi o pai dela lendo jornal e fumando cachimbo. Dei-me mal...
15/10/1960 – Recuso-me a falar do meu aniversário. Mamãe fez o bolo e convidou minha tia, meus primos e até a Marli. Alguns já haviam chegado, mas papai aprontou novamente e roubou a cena. Desta vez ele estava completamente embriagado. Ponto final, não direi mais nada, acabou a festa dos meus catorze anos, fiquei arrasado e furioso, fui para a casa da minha tia. Não falarei mais no assunto, a festa acabou. Outubro é mês de eleições e Jânio foi declarado eleito, agora é a vez da UDN de dirigir o país. Será que ele varrerá a sujeira da política nacional como promete ou continuará colocando o lixo debaixo do tapete?
Estão surpresos por um garoto de catorze anos falar de política? Na minha casa respira-se política, meu avô foi prefeito por três mandatos na minha cidade e aqui só se fala de política. De política e de meu pai beberrão.
Em tempo: Glorinha ontem à noite estava de baby doll, amenizando o fiasco da festa. Festejei no banheiro!
28/10/1960 – Deu o maior quiproquó da paróquia. Meu irmão saiu com a lambreta do meu tio malucão e até dez horas da noite não havia retornado. Meu tio estava possesso e meu pai, depois de algumas cervejas, tomou as dores do meu irmão afirmando ser muito natural o rapaz querer dar umas voltinhas com as meninas. Minha mãe foi dizer que meu pai era mais irresponsável que o filho e o tempo esquentou. O clima lá em casa está ficando cada vez mais tenso e eu voltei novamente para a casa da minha tia. Quando acabar a bebedeira eu voltarei. Ou não?
PS – Minha prima usa calcinha de renda preta. Linda!
12/11/1960 – Minha mãe foi convocada pela diretora da minha escola. Motivo: eu e meu irmão estamos com rendimento abaixo da média. Tremendo vexame, todo mundo ficou sabendo da nossa situação, mas o pior foi a bronca da minha mãe:
- Vocês querem se tornar adultos iguais ao seu pai?
Poxa, pegou mal...
17/12/1960 – A professora de apoio foi muito dura conosco, mas tanto eu como meu irmão conseguimos passar de ano. De raspão, mas passamos. Agora o que importa são as férias, muita bola e chute nas canelas.
Meu irmão descobriu o meu ponto de observação e espalhou pra todo mundo que eu estava de olho na Glorinha. Fiquei muito invocado, ele havia aprendido muito bem as manhas de nosso pai...
22/12/1960 – Na casa de minha tia fazem culto espírita. Dizem que minha avó é vidente e nas reuniões das quartas feiras ela se dirige aos espíritos perturbadores, doutrinando-os. Diz que são os companheiros espirituais do papai. Serão doidões desencarnados? Acho que eles não ligam muito para as preleções dela e preferem a companhia do meu pai... Fico muito assustado com estas sessões, prefiro ir para a casa da minha tia nos outros dias da semana. Nesta vez aconteceu que cochilei durante o culto e o meu primo me deu um safanão para que acordasse, imaginei que estivesse possuído... Sai de mim Belzebu!
24/12/1960 – Véspera de Natal e dia de sol, tudo de bom. Eu e meu primo fomos à praia da Urca. Foi difícil arrumar um lugar na areia. Os ônibus Lins-Urca e Central-Urca, estes apelidados de Camões porque pareciam ter um só olho, despejavam cada vez mais gente na praia. Umas meninas se engraçaram conosco, mas a tia delas chamou a nossa atenção. Velha mal amada, que não permitia que as meninas se divertissem, acabou com nosso barato. Voltamos para casa, vermelhos como siris. Em casa, o velho dormia como peru em véspera de Natal, mamado...
28/12/1960 – Não gosto de datas festivas, elas são comemoradas com muito álcool, as pessoas confundem alegria com abuso e acabam causando decepção. Não comemoramos o Natal, nenhum amigo ou familiar aceita ir a minha casa, nem ninguém nos convida para suas festas. Somos discriminados por causa do comportamento do meu pai. O único que aparece e não se importa é o meu tio malucão , irmão da minha mãe, acredito até que seja para protegê-la, suponho que ele tenha medo de que ela seja agredida, embora eu acredite que esta hipótese seja remota pela índole pacífica de meu pai... Mas prevenir nunca faz mal.
No dia vinte e seis fui com meu irmão à casa da minha tia. Minha avó e sua irmã estavam junto ao rádio ouvindo a pregação do Alziro Zarur, da Legião da Boa Vontade. Em determinado momento, ele conclamou que todos fechassem os olhos e fizessem uma oração, quando todos os pedidos seriam atendidos. Sobre a mesa dois copos de água, um da minha avó e o outro da minha tia avó para serem abençoados. Quando as velhas fecharam os olhos para orar, aproveitei e coloquei uma pitada de sal de frutas no copo da minha avó. Quando ela abriu os olhos e viu a água efervescente, agradeceu:
- Fui beneficiada, Graças a Deus!
A outra retrucou:
- Esqueceram de mim!
E minha avó disse a seguir:
- É porque você não tem fé, mulher!
06/01/1961 – Ano Novo, vida nova! Num ímpeto de ousadia, fiz um verso para Glorinha, chama-se Bilhete.
BILHETE
Quisera ser um ourives da palavra,
Do pensamento um artista, artesão,
Para fazer somente de minha lavra
Um tesouro e colocar em sua mão.
Mas perdoa-me, querida, não sou capaz
Deste tesouro, poder lhe oferecer.
Apenas sou um poeta contumaz
Fazendo tudo por seu amor merecer.
Em você, sintonizo a alegria
De viver em permanente satisfação.
Com você eu teria noite e dia
Uma vida só de amor e perfeição.
Seja breve e me responda, por favor,
Livrando-me de tanta ansiedade,
Quando eu poderei viver com seu amor
Acabando de vez com esta saudade?
Mas é uma pena, a mesma ousadia que tive em escrever o verso, faltou-me na hora de me declarar a ela.