***  P A S S I O N A L ***




  
     "  Una mujer debe ser 
    soñadora coqueta y ardiente 
    debe darse al amor 
       (con frenético ardor) 
     para ser una mujer "

                                                            
              Cesar Lacerda                      
                                                      





            Num segundo ele está diante de mim e me toma pelas mãos. Uma indisfarçável atração me faz sorrir hipnotizada, entregue, perdida no rastro daquele olhar fixo em meu rosto, enquanto me conduz suavemente, como se eu fora uma pluma, rumo ao salão sombreado de vermelho e negro .   De repente, fica sério, suspira, e muito teso,  cola sua mão direita à minha cintura e com a outra,  toma a minha mão com suave firmeza.       
        Mal percebo a sala cheia e as pessoas afastando-se diante dessa cena um tanto inesperada. Ouvem-se os acordes de um tango. Nossos pés movimentam-se inicialmente cuidadosos, até fluirem em uma coreografia vibrante. Minhas pernas  à mostra, as meias pretas transparentes e uma fenda longa no justo vestido vermelho que as deixa totalmente libertas. Apesar do silêncio da platéia, sente-se no ar o peso da presença daqueles corpos que vibram diante da cena.  A grande penumbra naquele lugar de encontros furtivos esconde os caminhos percorridos por mãos e bocas, os corpos colados em movimentos febris.
        Deslizamos naquele transe.
       A  atmosfera   exala um odor intenso, um misto de mofo,  suor, perfumes e
cigarro.  E a química dos corpos entrelaçados vibra em sussurros, suspiros,  abandonos, desejos à flor da pele. 
       Estamos completamente envolvidos. Nossas   mãos erguidas colam-se nas palmas. Há um frêmito que beira à agonia. Ele começa a acariciar minhas costas nuas e vai descendo até abaixo da cintura, fazendo movimentos escandalosos.   
      Meus olhos encontram os de um rapaz agarrado a uma zinha muito magra, de olhos escuros e fundos. Este parece hipnotizado e sinto minha pele queimar com sua fixidez aturdida. Ramiro sussurra  ao meu ouvido: 
       "anda minha bela, bamos a bailar!" 

         Estou descendo a rua embaixo de chuva e meus pés deslizam no chão batido escorregadio como sabão... 

         A música vibrante de cadências bem marcadas penetra intensa em meus ouvidos agora desatentos, enquanto tento me equilibrar. E uma voz longínqua... "Mira, la bailarina!" Que sonho doido, penso, pois só consigo ouvir a voz de minha mãe dizendo pra eu me apressar com as compras, as compras... ... e quem é esse homem que me abraça, como cheguei até aqui?
        - Ramiro, eu estou meio tonta, digo sussurrando,  enquanto pouso a cabeça em seu ombro.

        A vila tinha cheiro de miséria... meus brinquedos tinham sumido,  sono na sala de aula do curso noturno , trabalho sem futuro na loja da esquina. Meu pai sentado nos degraus da nossa casa, tão abatido... nunca esquecerei aquele retrato...e nos olhamos entendendo tudo. De que forma incompreensível sempre conseguia me sentir e eu a ele? Que mudo código de entendimento possuíamos? Como?... Saí de casa e fui morar em outra cidade, os olhos dele falando sempre muito mais, ele só disse: "tu vai ficar logo ali, atrás dos morros," referindo-se à serra junto à qual construiram-se várias cidades.

          Um ruído de vidros estilhaçados me traz bruscamente à tona. Corpos movimentando-se em ondulações aceleradas  são rapidamente engolidos para todos os lados. Ramiro puxa-me pela mão e corremos em direção a uma porta. Pega firme o meu braço e me põe pra dentro do quarto. Lá fora, uma briga faz as tensões fluirem em socos e pontapés, com muitos gritos femininos.
        Aquele é o seu quarto, onde ele descansa quando o movimento da boate diminui. Um pouso para casualidades como essa. Ele solta um palavrão e se queixa dos estragos com que vai arcar. Em seu portunhol de uruguaio há muitos anos no Brasil, vai lascando:
       - E tu, chica, mi "princessa", quieres beber una "cevessa"?
       Ah, ele é encantador assim, manso e carinhoso. Este é meu homem, Ramiro, que logo me abraça e me joga na sua cama. A "cevessa" pode esperar... 

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(conto publicado em março de 2008, revisado com pequenas alterações )


  Uma apreciação:
18/04/2008 10:50 - Rodolpho
 Querida Tania - Fala o Rodolpho - Li  "Ramiro", e nele você atingiu a APRA, e isso é raro. APRA quer dizer: prendeu a ATENÇÃO, conseguiu a PERCEPÇÃO, manteve fixa a RECORDAÇÃO, e promoveu a AÇÃO, traduzida em aplausos entusiásticos e em releitura do texto. A sua técnica é primorosa: você costura retalhos numa inspiração cubista, e constrói um todo, acabado e perfeito. Parabéns! Um abraço muito apertado do Rodolpho
 
tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 09/03/2011
Reeditado em 10/03/2011
Código do texto: T2838293
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